“Estou a usar o lenço que me ofereceste aos 12 anos, com o todo o dinheiro que ganhaste no teu aniversário”

Levei dias a pensar no filme de Diogo Costa Amarante. A curta-metragem “Cidade Pequena” tem o rapaz que guia pelos lugares próprios de um filho que tem mais do que pensamento. Tem consciência.

É mais um prémio para o cinema português e para a ousadia de fazer. O Urso de Ouro para a melhor curta-metragem no Festival de Berlim deste ano tem noção de estrutura, recado esclarecido de que somos criadores. A sorte já não é para amadores. E nem vale a pena estar para aqui a falar da qualidade do cinema que se faz por cá. O que vale é pensar. Continuar a ter essa ideia de que ver cinema só vale a pena se for para levar o filme para os silêncios, para as viagens no autocarro e para os primeiros segundos do acordar. E sim, o filme de Diogo Costa Amarante fez-me isso. Se primeiro reagi, depois entendi. E nessa frase: “a diferença entre nós e os animais está na consciência da morte”.

Verdade seja, dita por uma mãe, que quer da felicidade o único caminho possível para o filho. Na sombra, essa mãe é quase como “as nossas mães”, sabendo que está por tempos já curtos a perda do filho para o mundo que lhe acontece.

Acho que a minha mãe soube disso desde o meu primeiro dia. Que a nascença nunca leva à pertença e que a dependência é uma escolha. A maior parte das vezes, da própria mãe. Ser filho é mais do que uma circunstância porque os gestos que se fazem para a mãe e pela mãe são da consciência. E parando por essa memória, ainda me lembro dos lugares e tamanhos, que eram tão grandes, dessa altura dos interruptores das luzes ou do lavadouro do quintal que servia de piscina de verão, debaixo da maior árvore do mundo que era a nespereira da minha madrinha, virada ao oeste laranja dos fins da tarde. Sei, por noção de estar viva desde essa altura, que nunca fui da minha mãe, nem de ninguém.

Houve um dia, lá para os meus dois anos, que a janela da porta para o quintal serviu de marco. E pensei: “vou lembrar-me desta janela aberta, do vidro e do postigo e quando for grande, quero saber que neste dia, já sabia que existia”. Lembro-me sempre desse momento, sempre que faço anos. Tramada, a consciência.

A minha filha também não é minha. Também nunca o foi. Disse-me logo, no primeiro choro, cheio de vontade de afirmação: “sou do mundo e oiçam”. Esta semana, recebi uma carta que escreveu. Mais uma vez, comovente porque que a distância tem a virtude de nos aproximar. Dizia que agora entende-me melhor. Como mãe. Que a capacidade para o ser é feita de escolhas nem sempre entendidas pelos filhos. Que as distâncias, por vezes até afetivas, são necessárias para aprender e crescer e mais dolorosas para a mãe (acrescento eu). Nesta carta, fica registado momento em que a minha filha entendeu a mãe que tem. Sendo este o presente que me dá, em aniversário da mãe que tem a filha do outro lado do mundo, é o melhor presente do mundo. Saber que a minha filha tem a consciência que ser mãe é a tarefa mais difícil do mundo. Porque os filhos nunca são nossos. São do mundo. E esse é o gesto maternal mais gratificante e mais difícil de toda uma vida. O gesto que, na hora da morte, ainda espero ter consciência dele.

A minha mãe telefonou-me. Diz-me que está a usar o lenço que lhe ofereci, tinha eu 12 anos. E é verdade, gastei todo o meu dinheiro naquele lenço maravilhoso para a fazer feliz. Consciente gesto, para a fazer feliz. Hoje, oferece-me de volta esta lembrança para me devolver a mesma felicidade que lhe dei. Tal como a minha filha, que nessa carta, sente a felicidade que sempre me deu. Acho que vou ter de continuar a fazer anos. E ver cinema.

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