Manter o amor numa fotografia

A frase vem da tradução livre de uma canção pop que se ouve por aí. Livre ao ponto de se impor de repente como uma forma simples de dizer o que andamos todos aqui a fazer.

Por infelicidades da morte, esta semana falei com João Tabarra. Anda pelas alemanhas universitárias da arte a ensinar pessoas a pensar. E em momento de notícia triste, escreveu-me para dizer que Mestre Querubim tinha morrido e que há tanto para dizer deste senhor Lapa. A conversa meteu fadas e cores e sorrisos e mais cenários. Fiquei contente. Estar em linha com um autor como Tabarra, ufa... é incrível.

João Tabarra tem no seu percurso artístico um ponto de partida que o distingue. O fotojornalismo. Começou por estar ao lado das pessoas que têm histórias para contar, nessa distância das histórias que merecem ser bem contadas. Andou pelas ruas e pela guerra, fez primeiras páginas e sentenças de tribunal: chegou lá mas veio embora. Ainda bem.

Agora faz da fotografia esse espelho enorme. Coloca-se, convoca-se para contar da condição humana (frase feita, bem certo, mas inevitável). Há meses, estivemos juntos numa viagem. Fomos ao encontro da sua mais recente exposição, no Colégio das Artes na Universidade de Coimbra. Biotope tem essa mesma vontade de contar uma história. Ou de denunciar egoísmos que se dizem humanos. Ao encontro dos outros anda a obra de Tabarra, que por matérias de pensamento nos diz sobre os animais. Da pouca importância que damos aos animais. Ou à sua existência. Se alguma vez entendi Sartre, essa existência tem de passar pela dignidade, ao contrário dessa ideia de que é desprovida de espiritualidade. Mais ainda, não conheço nenhum ateu que se diga isento de dimensão espiritual. Aliás, não conheço nenhum ateu mau. Aqueles que se cruzam na minha vida, têm tal sentido de responsabilidade sobre os outros, que nada é feito ou decidido sem pensar no benefício humano a retirar (devo ser uma pessoa de sorte). Ainda mais em frente, de frente para o mundo, Tabarra nem nos prepara o impacto do resultado, depois de ver a sua obra. Quer que o choque tenha consequências puras, sentidos explosivos. Quando nos confronta com a filósofa Élisabeth de Fontenay, a primeira a pensar na condição animal como igual. A primeira a dizer que o que fazemos aos animais é inumado (muito mais que desumano, se alguma vez percebi Lyotard). Habituámo-nos ao sistema que se dita essencial, ao ciclo que se quer obrigatório, às rotinas que se impõem cegas. O que João Tabarra nos diz em cada fotografia que nos dedica (sim, a todos nós) é o motim. É a ousadia. É a revolução. Em Biotope somos iguais. Nós e os animais. E depois perguntem a João Tabarra de espiritualidade. E a sua obra engrandece.

Há dias, a minha filha mostrou-me uma fotografia que me tinha tirado sem me aperceber . A surpresa do gesto comoveu-me, ainda mais porque nesse cenário de família lá estava eu, ela, a casa e o gato. Juntos como iguais. E todo o amor. E de repente a viagem a Coimbra para ir ver a exposição de João Tabarra caiu em mim. A Arte é mesmo o nosso melhor.

  • Exposição Biotope de João Tabarra, Colégio das Artes, Universidade de Coimbra, novembro 2015;
  • Élisabeth de Fontenay, Le Silence des bêtes. La philosophie à l’épreuve de l’animalité, Paris, Fayard, 1999.

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