Bruxelas avisa Londres. Renegociar Protocolo da Irlanda do Norte "não é opção"

por Graça Andrade Ramos - RTP
Graffiti unionista no porto de Larne, Irlanda do Norte, contra os controlos à entrada de bens impostos por Bruxelas Reuters

O primeiro-ministro Boris Johnson prepara-se para anunciar sexta-feira a decisão unilateral britânica de não cumprir o Protocolo assinado com a União Europeia para o controlo de bens na Irlanda do Norte. Os líderes europeus lamentaram e deixaram avisos aos britânicos. "Não toquem nisto".

A crise surge depois da ministra dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Liz Truss, ter rejeitado soluções propostas em novembro passado por Bruxelas para resolver questões pendentes relativas aos acordos comerciais pós-Brexit, por as considerar um retrocesso. “A resposta” [aos problemas], afirmou Truss, “não pode ser mais controlos, burocracia e perturbação”. As propostas da União Europeia quanto ao protocolo da Irlanda do Norte iriam “fazer-nos recuar”, acrescentou.

Truss prometeu que o Reino Unido iria tomar medidas unilaterais, apesar de preferir uma solução negociada. “Não iremos deixar de agir no sentido de estabilizar a situação na Irlanda do Norte se não for possível encontrar soluções”, garantiu a responsável pelas relações externas britânicas.

Os ministérios do executivo de Johnson estarão a preparar várias propostas de lei para remover unilateralmente a necessidade de controlos em todos os bens enviados pelo Reino Unido para consumo na Irlanda do Norte.

A ser implementada, a nova legislação irá romper com o tratado assinado por Boris Johnson em 2019, numa rota de confronto com a UE.

Caso contrário o líder britânico terá (mais) uma crise política para resolver, já que os nacionalistas venceram pela primeira vez as eleições locais domingo passado na Irlanda do Norte, abrindo caminho a uma eventual desagregação do Reino Unido se nada for feito para minimizar problemas de legislação desigual num mesmo país.
Avisos da UE
O primeiro-ministro da Bélgica, Alexander De Croo, admitiu que o bloco poderá recorrer a medidas retaliatórias caso Londres avance com a remoção dos controlos, ao mesmo tempo que deixava avisos.

A nossa mensagem é muito clara. Não toquem nisto, isto é algo que acordamos”. “Se esse acordo for revogado, então creio que todo o sistema será revogado. Eu não veria outra solução”, acrescentou. Olaf Scholz, o chanceler alemão, acrescentou as suas críticas. “Ninguém deveria unilateralmente rasgar ou romper ou de forma alguma alterar o acordo que estabelecemos juntos”, afirmou.

O vice-presidente da Comissão Europeia, Maros Sefcovic, sublinhou por seu lado que o Protocolo da Irlanda do Norte é uma “pedra basilar” do acordo do Brexit e que “renegociá-lo não é uma opção”.

“A União Europeia está unida nesta posição”, garantiu num comunicado, insistindo que o bloco “trabalhou incansavelmente” para propor soluções.

“A UE tem estado aberta a trabalhar em conjunto com o Reino Unido na implementação do Protocolo para levar certezas legislativas e previsibilidade às pessoas e empresas na Irlanda do Norte”, frisou Sefcovic. O bloco “mantém-se aberto a tais debates. Somente soluções conjuntas poderão funcionar. Ação unilateral adotada pelo Reino Unido só irá tornar extremamente difícil o nosso trabalho” acautelou o vice-presidente da Comissão.
"Preservar" a estabilidade e a paz
Argumentos que não convenceram o executivo britânico. Michael Gove, ministro para as Relações Intergovernamentais, reiterou que “todas as opções estão sobre a mesa”, apesar de sublinhar que o Reino Unido irá continuar a negociar para resolver o diferendo.

A ideia do executivo não é “rasgar” o acordo, garantiu aos microfones da BBC esta manhã. “Não. Vamos negociar com a EU, de forma a conseguir o melhor resultado possível para as pessoas da Irlanda do Norte, mas nenhuma opção está fora da mesa”, afirmou Gove.

A “Liz Truss irá reunir-se com Maros Sefcovic amanhã. Eles dão-se bem. Irão tentar obter avanços amanhã. Sei que ambos estão completamente empenhados em garantir que resolvemos algumas questões muito difíceis que surgiram”, explicou o responsável.

Quando um “governo britânico está preocupado com a segurança de todo o Reino Unido seria de esperar que nenhuma opção fosse descartada e isso está absolutamente correto”, afirmou Gore com convicção.

O governo de Johnson usou o Discurso da Rainha, esta terça-feira, para declarar que a continuação das negociações com Bruxelas não irá “impedir o caminho para a proteção da paz e estabilidade na Irlanda do Norte”.

Em reação, Sefcovic apelou Londres a imitar Bruxelas em “determinação e criatividade” para resolver as questões em disputa. A ministra Liz Truss respondeu depois que as propostas do bloco europeu não respondem de forma apropriada aos problemas que afetam a Irlanda do Norte.

“Os preços aumentaram, o comércio está a sofrer perturbações graves e as pessoas da Irlanda do Norte estão sujeitas a leis e impostos diferentes daquelas no outro lado do Mar da Irlanda, o que as deixou sem um executivo tornando-se uma ameaça à paz e à estabilidade”, referiu a ministra britânica dos Negócios Estrangeiros.
Espada e parede
As reações no plano político britânico foram diversas.

A ex-primeira-ministra conservadora e antecessora de Boris Johnson, Theresa May, avisou o chefe do executivo contra quaisquer ações unilaterais no Protocolo, apelando Johnson a levar em conta “o sentido geral do que tal ação diria do Reino Unido e da sua vontade de cumprir tratados que assinou”.

Em resposta, Sir Jeffrey Donaldson, líder do Partido Democrata Unionista, da Irlanda do Norte, insistiu que “tem de se resolver” o Protocolo, que “está a minar a estabilidade política na Irlanda do Norte”. A pressão para solucionar os problemas do acordo agravou-se após as eleições locais do domingo passado, perdidas pelo DUP para o partido nacionalista Sinn Fein. O partido de Sir Jeffrey avisou desde logo Londres de que não iria nomear um vice-primeiro-ministro para formar um executivo até “ser tomada ação decisiva quanto ao Protocolo”.

Boris Johnson já telefonou ao primeiro-ministro da Irlanda, Micheal Martin, a avisar que a situação “é agora muito grave”.

Questionado sobre o prazo para resolver os problemas do Protocolo, Sir Jeffrey recusou colocar metas. “O que estou a esclarecer muito bem é que, necessitamos de uma ação decisiva, e necessitamos dela rapidamente”.

Opinião contrária tem o Sinn Feinn. A vice-presidente do partido nacionalista da Irlanda do Norte garantiu terça-feira que o Protocolo “está aqui para ficar” e apelou ao DUP para formar governo.
Salsichas, pets e vistorias
Vários ministérios do executivo londrino alertaram terça-feira à noite que a implementação do acordo tal como está iria implicar a aplicação de “fardos inaceitáveis sobre as empresas e comunidades da Irlanda do Norte”, com “bens diários a desaparecerem das prateleiras”.

Os responsáveis deram como exemplo das dificuldades as salsichas fabricadas em Lincolnshire, as quais passariam a necessitar de um certificado veterinário para entrar na Irlanda do Norte. Pelo menos 200 retalhistas no Reino Unido já deixaram de transportar estas salsichas para o outro lado do Mar da Irlanda, referiu Londres.

Os controlos previstos no Protocolo preveem ainda a possibilidade de vistorias aos sacos dos passageiros do ferry a caminho da Irlanda do Norte, em busca de sanduiches e outros produtos alimentares, enquanto os donos de animais de estimação teriam de despender 280 libras em certificados e vacinas para os levar consigo de férias no Reino Unido.

Também medidas como cortes do IVA em produtos de poupança energética aplicadas no resto do Reino Unido não poderão ser aplicadas na República, uma vez que o Protocolo prevê que as taxas europeias se mantêm ali.

O Protocolo da Irlanda do Norte foi uma das peças mais difíceis de negociar entre Bruxelas e Londres após o Brexit. Em causa a fronteira partilhada entre a Irlanda do Norte, República do Reino Unido, e a Irlanda, país membro da União Europeia e parte integrante da livre circulação de bens.

A solução para impedir a entrada ilegal ou fora dos parâmetros impostos por Bruxelas no espaço europeu, de bens produzidos no, ou importados pelo, Reino Unido, foi impor controlos à sua entrada na Irlanda do Norte. São estes que Londres quer agora ignorar unilateralmente.

Outra solução, que a vitória do Sinn Feinn parece tornar admissível, seria a desanexação da Irlanda do Norte do restante Reino Unido e a sua integração na União Europeia. A oposição dos unionistas a este cenário poderia significar o regresso de um conflito civil sangrento.
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