Desperdício vs fome. Crise alimentar nos EUA devido à pandemia

por Graça Andrade Ramos - RTP
Porcos numa suinicultura em Kenyon, Minnesota, Estados Unidos Reuters

Produzir comida para a enterrar quando milhares de pessoas passam fome. É o dilema que enfrentam a indústria alimentar norte-americana e os governos estaduais e federal, que já investiram milhões para tentar fazer chegar os produtos agrícolas aos bancos alimentares, num programa muito contestado.

O exemplo da suinicultura ilustra bem o drama dos produtores de alimentos nas mais variadas áreas, em todos os Estados Unidos e em plena pandemia.

Devido a surtos de Covid-19, muitas das grandes fábricas de processamento de carnes, como a Tyson and Smithfield, encerraram em abril, obrigando milhares de produtores, sem alternativa para escoar os animais, a abate-los e a enterrar as carcaças.

Os números são impressionantes. No Minnesota, 90 mil porcos já terão sido mortos nas quintas desde que as fábricas começaram a encerrar. No Iowa, o maior produtor de carne de porco dos Estados Unidos, os responsáveis agrícolas estimam para as próximas seis semanas um excesso de 600 mil animais, cujo destino mais provável será a cova comum.

Ao mesmo tempo, milhares de pessoas fazem fila, seja nos bancos alimentares, em busca de comida que não podem comprar por terem perdido o emprego, seja nos supermercados, onde as prateleiras se esvaziam num ápice por falta de produtos.

Kroger, a maior cadeia de supermercados no país, está a impor racionamento quanto à quantidade de carne de porco ou de vaca que cada cliente pode comprar. A Costco, uma concorrente, limitou a três produtos por pessoa a compra de carne de vaca, de aves ou de porco. Centenas de lojas Wendy's esgotaram os hambúrgueres.
Um tropeço na cadeia e tudo entope
Os Estados Unidos produzem anualmente cerca de 100 milhões de suínos, numa cadeia contínua de inseminação, nascimento, criação e abate. Os porcos são engordados num período de seis meses, até atingirem o peso ótimo de 140 quilos. Se crescerem demasiado, as carcaças tornam-se demasiado pesadas para serem içadas e manipuladas nos matadouros e estes não compram os animais.

Com as fábricas fechadas, milhares de porcos já ultrapassaram o tamanho e o peso previstos. A maioria dos suinicultores não tem lugar onde manter os porcos que não vende, nem armazéns frigoríficos onde guardar as carcaças e há uma segunda leva de animais praticamente pronta.

Para evitar o desperdício, resta-lhes tentar atrasar o processo de engorda, aumentando a temperatura nos chiqueiros, retirando proteínas à ração ou tornando-a menos apetitosa, como tem feito Shane Odegaard, de South Dakota, em colaboração com um nutricionista.

A sua produção envia anualmente 15 mil porcos para a fábrica Smithfield's de embalamento de carnes em Sioux Falls S.D., o que representa 90 por cento dos seus rendimentos.

Quando a fábrica fechou, a 12 de abril, Odegaard mudou a alimentação dos seus porcos para atrasar o crescimento e apinhou mais animais nos chiqueiros. A recente reabertura parcial da fábrica foi uma ajuda, mas continua com uma reserva de animais.
Gaseados ou abatidos a tiro
Não são só as perdas económicas mas também o impacto emocional e a angústia que ameaçam milhares de suinicultores, sobretudo os donos de grandes produções, os mais afetados e forçados a abater milhares de animais sem qualquer retorno financeiro, em vez de os enviar para os matadouros onde os animais deveriam ser desmanchados e processados. No Minnesota, um produtor selou as fendas do seu chiqueiro e bombeou monóxido de carbono através do sistema de ventilação. Outro admitiu fazer o mesmo após colocar os animais num camião. Um terceiro matou os seus porcos a tiro na cabeça. Levou o dia todo.

"Há produtores incapazes de completar as frases quando falam do que têm de fazer", admite Greg Boerboom, um suinicultor de segunda geração, de Marshall, Minnesota, que está a tentar encontrar forma de evitar o abate de mais de mil porcos que tem de reserva.

Outros setores enfrentam o mesmo problema.

Um avicultor do Minnesota viu serem gaseadas 61 mil das suas galinhas poedeiras e o processador de aves, Allen Harim Foods, escreveu em abril aos seus produtores a sugerir o "despovoamento dos bandos nos campos", levando o mês passado ao abate de mais de dois milhões de aves em quintas por todo o Delaware e por Maryland .

Também em abril, o Presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva a dar mais poderes ao Departamento de Agricultura dos EUA, USDA, para manter as fábricas a funcionar. O governo federal anunciou planos para comprar mais 100 milhões de dólares de carne suplementar.

Em muitos locais, o exército interveio e começou a recolher e a distribuir gratuitamente alimentos perecíveis antes destes serem deitados fora.

Mesmo assim, as medidas não deverão ser suficientes para evitar muito do desperdício.
Caixa Alimentar dos Agricultores às Famílias
Leite fresco deitado fora e vegetais enterrados ou deixados a apodrecer nos campos são outras das consequências da paragem económica, devido ao encerramento de fábricas de processamento, de restaurantes e de hotéis e à paragem dos navios de cruzeiro.

O USDA, está a tentar encontrar formas de contornar a cadeia de distribuição e estabelecer pontes diretas entre os produtores e os bancos alimentares.

A 17 de abril, por exemplo, o secretário para a Agricultura, Sonny Perdue, anunciou o programa Caixa Alimentar dos Agricultores para as Famílias, que abriu concursos para financiar empresas capazes de ir buscar, cozinhar e embalar os alimentos e em seguida distribuí-los.

Apesar de mencionadas no discurso de Perdue, grandes empresas de distribuição, como a Corporação Sysco de Alimentos Americanos, foram ignoradas na altura da atribuição dos subsídios enquadrados no programa Caixa Alimentar.

Em vez disso, cerca de 200 empresas, muitas de catering de casamentos ou planeadoras de eventos, conseguiram quantias chorudas, algumas de quase 40 milhões de dólares, apesar de terem de montar quase desde o início as suas operações, de recolha, confeção e distribuição, e da sua falta de contactos no setor agrícola.

Uma delas, a CRE8AD8 - pronunciado Create A Date ou Cria um Encontro - recorreu aos seus seguidores do Facebook para encontrar agricultores e bancos alimentares e contratar os 125 empregados que pensa vir a necessitar, incluindo chefs, coordenadores de projetos e especialistas em segurança e regras alimentares.
"Estamos na fase de planeamento quanto a logísticas", admitiu à Agência Reuters o presidente executivo da CRE8AD8. 

O próximo passo será "contratar a nossa força de trabalho, definir tarefas e papéis e atingir as nossas metas". Esperam produzir três tipos de caixas, produtos frescos, laticínios e refeições de proteína pré-cozinhadas e congeladas, e arrancar a atividade dentro de menos de um mês.
Contestação
"Muitas das empresas que conseguiram contratos sem funcionários, armazéns, ou capacidade de distribuição, estão a contactar companhias que têm estas capacidades e que foram preteridas sem razão aparente", afirma, perplexo, Tom Stenzel, presidente da Associação de Produtos Frescos dos EUA, numa carta enviada esta semana ao USDA.

A agravar o problema, muitos dos contemplados com as ajudas federais não têm licenças atribuídas ao abrigo da legislação sobre produtos alimentares perecíveis, que garantem aos agricultores o pagamento do que lhes é devido.

"Enquanto agricultor, estou desprotegido" explicou, à Reuters, Shay Myers, o presidente executivo de uma firma agrícola de Idaho, que perdeu 40 a 60 por cento da sua produção de cebola devido ao confinamento. "Não lhes vou vender nada", garantiu.

Alguns distribuidores tradicionais conseguiram contratos, como a Borden Dairy, e vêem-se a braços agora com a responsabilidade de distribuir, em apenas seis semanas, mais de 165 milhões de litros de leite, o equivalente a 11 por cento do seu volume anual de negócios.

Os responsáveis pelos bancos alimentares também contestam a forma como o programa está a ser implementado e não percebem porque não foram usados canais de distribuição pré-existentes.

"Alguns dos vendedores desconhecem completamente as regras. Propuseram preços baixos mas não cumprem realmente os requisitos", criticou Brian Greene, diretor executivo do Banco Alimentar de Houston

O departamento federal defendeu o seu método de seleção. Uma porta-voz revelou que as 550 propostas recebidas foram avaliadas quanto à informação técnica fornecida, preço, experiência e capacidade de desempenho.

"Os bancos alimentares e outras organizações sem fins lucrativos deverão começar a receber as primeiras entregas a partir de 15 de maio", prometeu.
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