Acordo pós-Brexit. UE e Reino Unido na senda do desentendimento

por Graça Anddrade Ramos - RTP
Michel Barnier, negociador da UE para o Brexit e pós-Brexit, a 10 de fevereiro de 2020 durante uma visita ao Luxemburgo Reuters

A proximidade, geográfica e económica, deverá impedir Londres de obter, da parte de Bruxelas, um acordo pós-Brexit semelhante ao existente entre a União Europeia e o Canadá. O duche de água fria nas aspirações britânicas foi dado esta terça-feira pelo negociador europeu para o Brexit, Michel Barnier. Londres, por outro lado, explicitou esta semana novas regras de imigração que deverão aborrecer Bruxelas.

As duas partes deverão começar no próximo mês a negociar os termos das suas futuras relações pós-Brexit. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, já afastou a hipótese deste período de transição se prolongar além de 31 de dezembro de 2020.

Os desentendimentos já começaram a aflorar.

O negociador principal do Reino Unido, David Frost, discursou em Bruxelas segunda-feira, e apelou a uma "relação-tipo Acordo de Comércio Livre com o Canadá". A ideia já tinha sido explicitada por Johnson, no seu primeiro discurso após a sua vitória eleitoral a 12 de dezembro de 2019.

A resposta europeia, esta terça-feira, não foi favorável.


"Permanecemos prontos a oferecer ao Reino Unido uma parceria ambiciosa", garantiu Michel Barnier em Bruxelas.

A União Europeia está também "pronta a trabalhar muito rapidamente com o Reino Unido", na base do acordo pré-Brexit estabelecido com o primeiro ministro Boris Johnson, acrescentou. "Continuamos prontos a propor esta parceria se o Reino Unido a quiser", sublinhou o francês, detalhando depois os termos admitidos por Bruxelas.

"Um acordo comercial que incide de forma particular nas pescas em condições equitativas, com um país que tem uma proximidade muito específica - uma proximidade territorial e económica - o que faz com que não possa comparar-se com o Canadá ou a Coreia do Sul ou o Japão", especificou Barnier.O Acordo com o Canadá entrou parcialmente em vigor em 2017, mas não foi ainda ratificado por todos os Estados-membros da UE.

De acordo com um esboço do acordo que está a ser trabalhado em Bruxelas - e ao qual a agência Reuters teve acesso -, os termos a apresentar a Londres são tudo menos simpáticos.

Cobrem um leque variado de exigências a negociar, desde exigências de garantias de concorrência leal que "sobrevivam ao tempo", até à possível devolução de peças de arte europeia roubadas, por parte de Londres.

"As partes deviam abordar questões relativas à devolução ou restituição de objetos culturais removidos ilegalmente dos seus países de origem", refere o documento.

Apesar de não serem mencionados, esta exigência refere-se aos mármores da Grécia antiga, levados para o Reino Unido no século XIX e conhecidos desde então como os Mármores Elgin, a partir do nome do britânico responsável pela sua presença em Inglaterra. As peças estão expostas no British Museum em Londres.
Parceria exigente
Esta quarta-feira, os embaixadores dos 27 deverão reunir-se em Bruxelas para debater os termos gerais a negociar, antes destes receberem o selo de aprovação numa reunião ministerial no final deste mês.

As previsões equitativas foram reforçadas nas últimas semanas, refere a Reuters.

"A parceria prevista deveria incluir uma colaboração económica ambiciosa, vasta e equilibrada, desde que existam suficientes garantias de condições equitativas", refere o esboço mais recente.

Os 27 exigem cláusulas semelhantes para o transporte marítimo internacional e outras áreas. Sublinharam também de forma firme que irão decidir sozinhos quaisquer questões equitativas que possam autorizar o acesso britânico aos serviços financeiros providenciados pelo mercado único europeu.
Imigração de qualidade
Londres anunciou entretanto novas regras para a imigração, as quais poderão ter algum impacto junto de cidadãos europeus, os quais gozaram até agora de acesso praticamente livre ao mercado de trabalho.

A ministra do Interior, Priti Patel, escreveu no jornal The Sun que "o nosso novo sistema de imigração irá fechar a porta do trabalho estrangeiro barato e não-qualificado", prometeu.

"A partir do próximo ano, todos os trabalhadores qualificados terão de receber pontos suficientes para trabalhar no Reino Unido", esclareceu.

"Terão de falar inglês, possuir uma oferta de emprego firme e corresponder aos requerimentos salariais", acrescentou Patel, prevendo que o plano irá levar a uma redução "dos números em geral".

Sob as novas regras, cidadãos europeus candidatos a preencher setores com falta de trabalhadores britânicos - caso do Serviço Nacional de Saúde - obteriam pontos extra, de forma a conseguirem preencher as quotas necessárias, explicou o Governo de Boris Johnson, face a diversas críticas.
As regras do CETA
O CETA - correspondente a sigla do seu nome em inglês, Comprehensive Economic and Trade Agreement - levou sete anos a negociar.

Estabelece, entre outras normas, o fim das tarifas entre o Canadá e os países europeus, na maioria dos bens, mantendo contudo alguns controlos aduaneiros e de impostos. Aves, carne e ovos mantem-se taxados.

O acordo obriga por exemplo o Canadá, a não adquirir quaisquer produtos que utilizem nomenclaturas próprias de produtos de zonas demarcadas europeias, como o queijo camembert ou presunto de Parma.

E, apesar de aumentar as quotas de aquisição - as exportações de queijo europeu para o Canadá aumentaram de 18,500 toneladas ao ano, para 31 972 toneladas - o CETA não as aboliu.

O CETA não abrange o comércio de serviços - embora exista o reconhecimento mútuo de qualificações, o que facilita a deslocação de profissionais entre ambos mercados de trabalho.

Empresas canadianas podem concorrer ainda a projetos europeus de grande envergadura e existe um acordo do cooperação a nível de normas de construção e de produção, evitando a dupla verificação de qualidade.
O que quer Londres?
O Canadá adotou também algumas das regras da UE em termos de direitos autorais e patentes. Por outro lado, o CETA praticamente não interfere na troca de serviços financeiros - um setor particularmente importante para a economia do Reino Unido.

A Londres serviria sobretudo um acordo "zero quotas, zero tarifas" com a União Europeia. A proximidade faz contudo com que o volume de trocas entre ambos seja muito superior à do Canadá com a UE.

Em 2018, o Reino Unido exportou quase 350 mil milhões de euros em bens e serviços para outros países membros, equivalente a 45 por cento de todas as exportações do país. Importou 429 mil milhões de euros em bens e serviços da UE, correspondente a 53 por cento de todas as suas importações.

Já o Canadá exportou para a UE em 2017, 32 mil milhões de libras em bens e serviços, ou seja 7,9 por cento das suas exportações e importou do bloco europeu 44 mil milhões de euros em bens e serviços, que constituíram 10,5 por cento das suas importações.

Outra hipótese avançada pelo Reino Unido é um acordo de linhas semelhantes as que governam o comércio entre a União Europeia e a Austrália.

Como não existe por enquanto nenhum acordo específico, as regras aplicadas são da Organização Mundial do Comércio, o que equivale a dizer que Londres está disposta a deixar definitivamente o bloco europeu sem qualquer acordo fixado.
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