Alemanha. Extrema-direita da AfD sob vigilância a contragosto

Março de 2021 ainda vai a meio mas já entrou para a história da política alemã. Logo no dia 3 soube-se que os serviços secretos federais, BfV, tinham colocado sob vigilância a Alternativa para a Alemanha, AfD, o partido de extrema-direita que entrou para o Parlamento há apenas quatro anos e logo como principal partido de oposição. O aviso estava feito mesmo se, apenas dois dias depois, a autorização dada pelo Tribunal Constitucional para a vigilância foi suspensa, por ter sido violado o pressuposto do sigilo e por ser ano eleitoral.

Graça Andrade Ramos - RTP /
Reuters

As eleições legislativas federais estão previstas para 26 de setembro e a preocupação com a influência da extrema-direita entre os alemães aguça-se ou, pelo menos, a aparência dela.

Paradoxalmente, isso poderá vir a reforçar a atração do partido, numa altura em que a AfD está em queda nas intenções de voto.Em 2017, cavalgando a onda da anti-imigração, o partido de extrema-direita obteve 12,6 por cento dos votos e tornou-se a terceira força nacional alemã e principal partido de oposição. Desde então, rivalidades internas e a oposição às medidas de contenção da pandemia de Covid-19 levaram o apoio eleitoral a cair para os nove por cento nas sondagens. A tendência confirmou-se nas eleições regionais dos Estados da Renânia-Palatinado e de Baden-Württemberg, este domingo.

Ainda não se sabe quem passou à imprensa a notícia da iniciativa do BfV, sigla para Bundesverfassungsschutz, ou Gabinete Federal de Proteção à Constituição. A fuga de informação poderá ter vindo das próprias fileiras do serviço secreto interno alemão, suspeito de albergar simpatizantes das ideias de extrema-direita.

Uma tal suspeita pode ser infundada mas o efeito da fuga não poderia ter sido mais favorável à AfD. O partido reagiu em fúria à notícia, vitimizou-se e denunciou uma decisão "puramente política".

"O dever do gabinete federal deveria ser evitar um golpe de Estado violento e não reprimir o debate de ideias democrático", lembrou Alexander Gauland, líder parlamentar do AfD, comparando o BfV à Stasi, a temida polícia secreta da RDA comunista.
Bofetada
De acordo com a comunicação social, a decisão de vigiar a AfD foi tomada no final de fevereiro, por suspeita de o partido estar a tentar minar a constituição democrática alemã. Culminou dois anos de análises à plataforma política da AfD e autorizava a agência a ouvir telefonemas e conversas entre os membros do partido e a escrutinar o seu financiamento. O BfV poderia ainda infiltrar o partido com informadores.

A Aliança denunciou uma agenda "clara" por trás da decisão.

"A agenda é clara. Primeiro tornamo-nos um "caso a investigar", agora somos um "caso suspeito" e somos colocados sob vigilância - e a certa altura irá surgir um pedido para banir o partido", reagiu Gauland. "Isso, graças a Deus, será uma decisão para o Tribunal Constitucional e não para o BfV". Ao lado do co-líder Tino Chrupalla, acusaram o gabinete da secreta alemã de tentar prejudicar o partido a meio ano das eleições.
A colocação sob vigilância é um carimbo infamante na política alemã, já que tal medida é reservada a grupúsculos ultra-radicais. O Die Linke, com uma componente oriunda do partido comunista da RDA, foi por exemplo vigiado durante alguns anos após a sua fundação em 2007. No caso da AfD, o braço mais radical e considerado neonazi, chamado simplesmente "a Asa", foi posto sob vigilância no ano passado e dissolveu-se oficialmente entretanto. Os seus membros permanecem filiados no partido.
A 5 de março, dois dias depois de Der Spiegel ter revelado as operações do BfV, a justiça ordenou a sua suspensão, numa bofetada de luva branca aos serviços de vigilância.

Para o BfV o episódio foi um autêntico tiro pela culatra. A AfD não só pôde surgir como vítima de perseguição como exigiu a demissão do diretor do BfV, Thomas Haldewang. Jörg Meuthen, co-presidente da Alternativa zombou mesmo de "um serviço de informações que não consegue manter nada secreto".

O Tribunal Administrativo de Colónia considerou que os serviços federais não "acautelaram suficientemente" o sigilo que era imperativo, antes de ser conhecida a decisão judicial sobre um recurso interposto pela Alternativa noutro processo.

Para os juízes administrativos, a publicidade ao programa de vigilância interferiu ainda de "forma inaceitável" com a legalidade das oportunidades entre partidos em pleno ano eleitoral, mesmo se a colocação sob vigilância não abrangesse os deputados e os candidatos às próximas eleições, regionais e federais.

Apesar de a autorização das operações ter sido cancelada, o gabinete federal deverá prosseguir com outras vigilâncias já em curso, às filiais da AfD na antiga Alemanha de leste e aos cerca de 35.000 neonazis da Asa da AfD.
Uma "gota de água"
Certo é que o episódio contribuiu também para adensar as suspeitas quanto à presença significativa de membros simpatizantes da extrema-direita nas forças da ordem alemãs, apesar das tentativas de limpeza após diversas investigações entre 2017 e o ano passado. Em outubro de 2020 o Governo alemão reconheceu a presença de 377 extremistas de direita nas fileiras destas forças, das quais 319 na polícia. O ministro Horst Seehofer, recusou reconhecer um problema estrutural apesar de algumas "ovelhas negras" e sublinhou que 99 por cento dos agentes respeitam os princípios constitucionais. O chefe da polícia federal, Dieter Roman, considerou que não existe qualquer rede de extrema-direita no seio da polícia.

Os 377 extremistas de direita desmascarados até então pelos serviços de informação eram, sublinhou na altura o ministro da Administração Interna, uma "gota de água" na totalidade de 300 mil agentes de segurança da Alemanha.

"Cada caso identificado é uma vergonha mas não existe qualquer problema estrutural", garantiu.

Horst Seehofer negou ainda a necessidade de investigações mais aprofundadas sobre o grau de racismo nas mesmas forças de segurança ou sobre o risco de discriminação face a minorias, como exigiam os Verdes e os social-democratas.

São as ações que fazem suspeitar que os inquéritos, empurrados pela propaganda de ativistas anti-extrema-direita, apenas afloraram a ponta de um profundo icebergue.
Indícios
Em 2018, o então diretor da BfV, Hans-Georg Maaßen, desvalorizou a violência anti-imigrantes registada na cidade de Chemnitz e considerou que os vídeos de migrantes perseguidos nas ruas por uma multidão tinham sido fabricados. A legitimidade das imagens já tinha sido contudo autenticada por testemunhas e pela própria chanceler Angela Merkel. Maaßen foi forçado a demitir-se.

A BfV também falhou na vigilância do homem que adquiriu a arma usada para assassinar político Walter Lübcke, da CDU, em 2019. O comprador era conhecido pelas suas simpatias pela extrema direita, o que deveria ter impedido a obtenção de licença para a aquisição. O Gabinete da secreta federal não informou o juiz responsável.

Recentemente, um membro do Comando das Forças Especiais, uma elite dentro da polícia alemã, foi condenado pela posse de uma Uzi e de mais de 55 mil munições. Pertencia ao NordKreuz, um grupo de veteranos das forças de polícia, militares e dos serviços de informações, que afirmam estar a preparar-se para o colapso da sociedade alemã, com uma extensa lista de 25.000 inimigos.

Noutro caso, os computadores da polícia foram usados para enviar mais de 100 ameaças de morte assinadas NSU 2.0, a ativistas antifascistas e as autoridades são acusadas de lentidão suspeita nas investigações. Agentes das polícias de Berlim, Hessen e Nordhein-Vestefália foram ainda recentemente identificados em grupos de chat de extremistas de direita.
AfD em queda
Tanto a esquerda alemã como o presidente da comunidade judaica do país, Josef Schuster, aplaudiram a colocação sob vigilância da AfD.

O secretário-geral do partido social-democrata, SPD, Lars Klingbeil, considerou "necessária e justa" a vigilância de um "partido antidemocrático" como o AfD. E Schuster acusou a Alternativa de "contribuir para minar as nossas estruturas democráticas", através de uma "política destrutiva".

Num sinal da proximidade das forças de segurança à Alternativa, cinco dos 89 deputados da AfD no Bundestag, o Parlamento federal alemão, são polícias. O partido tem ainda uma forte representação nos setores judiciário e no ensino.

Os membros moderados da AfD têm tentado responder às críticas adocicando a retórica anti-migração e construindo uma imagem mais distante do radicalismo, nomeadamente quanto à oposição às medidas de confinamento impostas pelo Governo no combate a pandemia de Covid-19.

A estratégia parece ser-lhes contrária e, apesar da forte oposição dos alemães às restrições, fortemente apoiada pelos grupos neonazis, a AfD tem sido incapaz de se tornar o rosto da dissensão.
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