Argélia. "Le Pouvoir" estuda próximas etapas após renúncia de Bouteflika

por Graça Andrade Ramos - RTP
Argelinos conseguiram a renúncia do Presidente Abdelaziz Bouteflika, após seis semanas de protestos pacíficos Ramzi Boudina - Reuters

As ruas das cidades argelinas acalmaram, um dia depois de o Presidente Abdelaziz Bouteflika entregar a carta de renúncia. Os manifestantes celebraram alegremente o anúncio e aguardam agora o futuro. Sexta-feira será o verdadeiro teste, tanto para o movimento contestatário como para o governo de transição que se deverá formar, de acordo com a Constituição.

A maioria dos argelinos exige que não seja só o Presidente a largar o poder, que ocupou durante 20 anos.

Toda a estrutura que o apoiou e que na prática governa o país há décadas, cognominada ironicamente como "Le Pouvoir" (O Poder), tem de ir também para casa, afirmam.

"Queremos um Presidente que perceba o que queremos", explica à agência Reuters Bouzid Abdoun, um engenheiro de 25 anos da empresa estatal de gás Sonelgaz. "Queremos viver aqui, não emigrar para a Europa", acrescenta.
Libertar o Estado
Na Argélia, uma em cada quatro pessoas abaixo dos 30 anos está desempregada. O país, dependente das receitas do petróleo e do gás, está amarrado a uma estrutura monolítica e estática liderada na sua maior parte por veteranos da guerra da independência (1954-62).

Em 2013, Bouteflika sofreu um acidente vascular cerebral e, desde então, quase desapareceu dos olhos do público. O país tem sido governado na prática pelos seus irmãos, por magnatas e por ex-oficiais dos serviços de informação.

É essa liderança e o seu sistema que os argelinos rejeitam.

"O grupo de Bouteflika capturou o Estado, por isso a prioridade para quem quer que o substitua é realmente conectar-se com milhões de manifestantes, que protestam porque já não confiam no poder", refere à Reuters o analista independente Farid Ferrahi.
À espera de sexta-feira
De acordo com a Constituição argelina, a renúncia ou morte do Presidente dá lugar a um Governo de transição encabeçado pelo líder da Câmara Alta, durante 90 dias, enquanto é organizada uma eleição presidencial.

O cargo é ocupado atualmente por Abdelkader Bensalah, um apoiante de longa data de Bouteflika, tal como o primeiro-ministro.

Esta quarta-feira, os 12 membros do Conselho Constitucional reúnem-se para confirmar a decisão do Presidente. Depois, será a vez de ambas as Câmaras se reunirem  E sexta-feira, dia em que ocorrem os maiores protestos desde há seis semanas consecutivas, terão a resposta dos argelinos.

"O que é importante para nós é que não aceitemos o governo (de transição)", diz Mustapha Bouchari, advogado e um dos líderes dos protestos. "Os protestos pacíficos irão prosseguir", garante.
Voz militar
Crucial para a renúncia de Bouteflika foi a opção, por parte dos militares, de unirem a sua voz à dos apelos das ruas.

Na terça-feira o Ministério da Defesa da Argélia, liderado pelo chefe do Estado-Maior do Exército argelino, general Ahmed Gaid Salah, exigia a demissão "imediata" de Bouteflika, referindo ser necessário avançar com os procedimentos constitucionais para o retirar do poder.

"Não existe mais tempo a perder" para declarar Abdelaziz Bouteflika como inapto para o cargo, dando voz à população da Argélia, referia o comunicado do Ministério.

Horas depois, Bouteflika apresentava a renúncia.

Será agora necessário aguardar pelas decisões das câmaras alta e baixa quanto à estratégia a seguir e observar com atenção as movimentações militares.
Não mexer
Para já, tanto a Rússia - aliada da Argélia na economia e na geopolítica desde a era soviética - como os Estados Unidos, que têm apoiado os protestos, afirmam que o processo interno de mudança do poder argelino não deverá sofrer influência externa.

O Departamento de Estado norte-americano disse que cabe aos argelinos decidir os próximos passos. A garantia russa tomou por seu lado a forma de um aviso simpático. "Esperamos que os processos internos nesse país, não afetem de forma alguma a natureza amigável das nossas relações", afirmou esta quarta-feira o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov.

Já o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Jean-Yves le Drian, exprimiu a esperança de que "os argelinos prossigam esta transição moderada no mesmo espírito de calma e responsabilidade", que marcou os protestos contra a recandidatura de Bouteflika.

A França, antigo poder colonial da Argélia, arrepiou caminho depois de ter apoiado o Presidente no início das manifestações.
Mini-Primavera Árabe?
As movimentações políticas na Argélia têm estado entretanto a ser acompanhadas de perto pelos organizadores de manifestações anti-governamentais no Sudão desde dezembro, desejosos de ver o Presidente Omar al-Bashir imitar Bouteflika, após 30 anos no poder.

Sarah Abdel-Jaleel, porta-voz da Associação de Profissionais Sudaneses, disse esta quarta-feira à Associated Press que o que sucedeu na Argélia é "uma conquista muito positiva", que demonstra o "sucesso da resistência pacífica em África".

"Dá-nos a todos, definitivamente, esperança e tranquilidade, devemos prosseguir", afirmou a dirigente.

Esta segunda edição - em ponto pequeno - da Primavera Árabe de 2010-2011 parece não estar a acender o mesmo rastilho. Al-Bashir não só recusou renunciar como iniciou uma campanha de repressão contra os dissidentes.
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