Argélia. Milhares rejeitam eleições sem mudança de regime

por Graça Andrade Ramos
A 29 de novembro de 2019, pela 41ª semana consecutiva e empunhando bandeiras do país, milhares de manifestantes exigiram uma limpeza profunda do aparelho político da Argélia. Reuters

Mais uma sexta-feira e as ruas das cidades e vilas argelinas voltaram a encher-se de multidões, pela 41ª semana consecutiva. Exigiram, mais uma vez, o cancelamento das eleições presidenciais, marcadas pelo Governo de transição para o próximo dia 12 de dezembro.

"Não vai haver eleição", gritaram milhares de pessoas, de bandeira argelina sobre os ombros e hostis a um escrutínio que apenas pretende, afirmam, legitimar um "sistema" político corrupto, no poder desde a independência em 1962.

Um dos cartazes mais comum ostentava a frase Não! Votei!, para mostrar a sua recusa de escrutíneos que não impliquem uma mudança do regime, rejeitado sem meias palavras desde o início dos protestos em 22 de fevereiro.

Um tal movimento [Harak] de contestação é inédito na Argélia, e a sua primeira vitória foi a demissão do Presidente Abdelaziz Bouteflika, que se manteve 20 anos no poder e que procurava ser reeleito em junho passado, contra a vontade dos argelinos.

O país tem estado sob o Governo de um executivo de transição, o qual cumpriu a promessa de organizar novas eleições presidenciais.

Os argelinos avisaram o poder executivo de que teria de se dar uma mudança política real e dizem que isso não se verificou.

Um sistema armadilhado

Considerados "filhos do sistema", os cinco candidatos à presidência são todos antigos ministros ou homens do aparelho e todos participaram ou apoiaram Bouteflika nalguma altura.

Nenhum recolhe a aprovação dos manifestantes. Nas redes sociais, circula a imagem de um manifestante com uma armadilha de caça, onde o isco é um boletim de voto.

"Estou contra este escrutínio, pois são os homens de Bouteflika que nos apresentam e são outros homens de Bouteflika que vão organizar e vigiar o escrutínio", barafustou aos jornalistas Said Bensalem, um reformado de 66 anos.

Muitos manifestantes afirmam que quem fôr votar no próximo dia 12 será um traidor nacional. Não é isso que pensa Bensalem.

"Mas não vou impedir aqueles que querem votar. É preciso respeitar os outros, ou não seremos melhores do que aqueles que denunciamos", explicou o reformado.

Algumas vozes, minoritárias, admitem que irão votar pois "é preciso ir em frente", como explicou uma enfermeira, Djawida, de 50 anos. "Marcho há várias sextas-feiras", garantiu à AFP, prometendo que, "se o novo Presidente não cumprir as suas promessas, então voltaremos à rua".

Não há sondagens públicas na Argélia, que permitam avaliar a futura participação eleitoral, mas a abstenção, muito significativa nos escrutínios mais recentes, é tida como a única forma de protesto contra um sistema armadilhado.
"É intimidação"
A repressão das manifestações agravou-se após o início da campanha eleitoral, no princípio de novembro. A tensão é cada vez maior, com protestos mais frequentes, mais detenções e encarceramentos mais prolongados.

Esta quarta-feira houve mesmo algumas brigas entre a polícia e manifestantes numa cidade rural. A capital, Argel, acordou esta sexta-feira sob um forte dispositivo de segurança.

A presença policial não desencorajou os manifestantes, antes os irritou.

"É intimidação! Porquê tantos carros de polícia? Manifestamos-nos pacificamente e somos contra a violência", denunciou Tassadit Ourabeh, reformada de 64 anos, citada pela AFP.

Várias centenas de pessoas juntaram-se muito cedo no centro da capital argelina, horas antes da marcha, gritando "Juro que não vou votar" e "É o nosso país , somos nós quem decide".


De acordo com a Agência France Presse, AFP, pelo menos 25 foram presas, juntando-se às 140 detidas preventivamente ou condenadas nos últimos meses por ligações ao Harak, de acordo com o Comité Nacional para a libertação dos detidos.

Apesar da repressão crescente, à medida que se aproxima a data das eleições, a contestação não abranda.


"Sempre houve uma mobilização forte, mas sobretudo uma determinação grande quanto à rejeição da eleição" presidencial, declarou à AFP o vice-presidente da Liga Argelina de defesa dos Direitos Humanos, Said Salhi, durante a marcha.
"Eles têm o voto, nós temos o veto"
Bouteflika foi substituído por um Governo de transição chefiado pelo Presidente Abdelkader Bensalah e pelo primeiro-ministro Nourredine Bedoui, mas o poder de facto está nas mãos do chefe de Estado Maior das Forças Armadas, o general Ahmed Gaid Salah.

Os três são antigos altos responsáveis do aparelho do presidente deposto.

Salah tem apelado à participação popular nas eleições, consideradas pelas Forças Armadas como a única saída para o impasse entre os que detêm o poder e o Harak, que se mantém um movimento geralmente sem líder.

"O povo argelino, todas as categorias, jovens mulheres, homens, estudantes, são exortados a manterem-se ao lado do seu país", declarou, apelando a "uma forte participação" nas presidenciais.

Não foi a primeira vez que Salah insinuou que os opositores ao escrutínio são cidadãos desleais ao seu país.

Para muitos manifestantes, a influência dos militares em questões políticas é precisamente uma fonte contínua de irritação.

Entre os cartazes contra a eleição, na marcha desta sexta-feira, viam-se também palavras de ordem como Soltem os prisioneiros e O exército devia deixar a política.

Um manifestante empunhava um cartaz que dizia Eles têm o voto. Nós temos o veto.

A criatividade no protesto tem sido uma imagem de marca, e os mais ativos ou populares têm caído depressa no radar das autoridades. Foi o caso do desenhador Amine Benabdelhamid, conhecido como "Nime", colocado sob prisão preventiva na terça-feira por um tribunal de Oran.

Uma das suas caricaturas, intitulada "O Eleito", inspira-se na história da Cinderela para mostrar os cinco candidatos presidenciais a experimentarem um sapatinho estendido pelo chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o general Ahmed Gaid Salah.
Limpeza profunda
O Harak confia na vitória, depois de ter conseguido que o exército retirasse o apoio a Bouteflika, forçando-o a renunciar em abril, e a prisão de dezenas de altos responsáveis por corrupção, incluindo um ex-chefe dos Serviços de Informação, irmão de Bouteflika.

A purga abrangeu ministros e grandes empresários ligados ao aparelho do Estado, que foram detidos. Vários entre eles foram condenados a penas pesadas por corrupção e dois ex-primeiro-ministros, Ahmed Ouyahia e Abdelmalek Sellal, deverão conhecer a sua sentença na próxima semana.

Os manifestantes exigem uma limpeza ainda mais profunda da elite governamental, que controla o país desde a independência há quase 60 anos e é mesmo conhecida simplesmente como "Le Pouvoir".


"Vocês enganaram o meu pai em 1962; Vocês enganaram-me em 1992; Vocês não irão enganar os meus filhos em 2019", lê-se num cartaz publicado no fim de semana passado.

As autoridades têm respondido com a prisão de dezenas de representantes da oposição e manifestantes. A lista dos detidos por "delito de opinião", publicada diariamente pelo Comité Nacional para a libertação dos detidos, não cessa de crescer.

Quinta-feira, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução a condenar "firmemente as detenções arbitrárias e ilegais, assim como o encarceramento, os ataques e as intimidações aos jornalistas, sindicalistas, advogados, estudantes, defensores dos Direitos do Homem e manifestantes pacíficos".

O Governo argelino foi duro na resposta, denunciando uma "ingerência flagrante nas questões internas" e um "desprezo" pelas instituições da Argélia.

Esse será o único ponto de convergência entre poder e os apoiantes dos protestos, os quais têm recusado qualquer alinhamento com potências externas e criticam mesmo violentamente a União Europeia.

Numa espécie de tira-teimas com o Harak, o principal sindicato argelino, pró-governo, promete para este sábado a sua própria marcha em Argel, a favor das eleições.
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