Ex-primeiro-ministro israelita denuncia metamorfose fascista do país sob Netanyahu

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
Ehud Olmert (de costas) e Benjamin Netanyahu numa imagem de arquivo de 2009 Reuters

É um libelo interminável. Ehud Olmert, antigo primeiro-ministro de Israel, acusa o seu sucessor no cargo de estar a transformar o país numa espécie de ditadura em proveito próprio e da família. Após ter advogado há mês e meio que Benjamin Netanyahu deveria "passar muitos anos na prisão", Olmert tomou de novo as páginas da imprensa para denunciar o que diz ser um clã que governa para si próprio a expensas da democracia, deitando para isso mãos ao aparelho do Estado, que coloca ao serviço dos seus interesses. Um caminho, assegura, que desembocará num "banho de sangue" nas ruas de Israel.

Não é a primeira vez que o antigo primeiro-ministro se atira a Benjamin Netanyhau, que lhe sucedeu no cargo há mais de uma década. Em Maio, numa altura em que o chefe do Governo começou a ser julgado por corrupção – em 2019 fora indiciado por fraude, abuso de confiança e aceitação de subornos – já Ehud Olmert advogava que o destino de Netanyahu, mulher e filho, deveria ser a prisão, e “por muitos anos”.

Mas Olmert lembra também o negócio dos submarinos. Em Novembro de 2016, na sequência de uma investigação da cadeia de televisão Channel 10, o procurador-geral israelita ordenara a abertura de uma investigação face a suspeitas de que o advogado de Netanyahu teria servido de pivot na compra de três submarinos alemães classe Dolphin-2, um negócio de quase 1.500 milhões de euros.

De acordo com o Channel 10, David Shimron, advogado pessoal de Benjamin Netanyahu que também trabalha para os alemães da Howaldtswerke-Deutsche Werft AG (HDW), estaria a manobrar o negócio dos submarinos ao servir de canal de comunicação entre o gabinete do primeiro-ministro e os responsáveis da empresa alemã, o que foi prontamente negado pelo mesmo. Da mesma forma, Netanyahu sempre rejeitou estas acusações, apresentando o argumento de que dedica “a maior parte do meu tempo à segurança de Israel. O princípio que me guia é claro: dar a Israel a capacidade para se defender de qualquer inimigo em qualquer situação”.

Relativamente a este processo, Olmert afirma-se como um perito no ‘Caso dos Submarinos’, já que ele próprio é o único primeiro-ministro, além de Benjamin Netanyahu, a ter adquirido submarinos alemães. E o veredicto é claro: Netanyahu incorreu num “caso sério de fraude (…) Netanyahu é um criminoso, um mentiroso e um aldrabão que cometeu vários crimes. Vejo-o a ir para a prisão por muitos anos”.

Não seria a primeira vez que um primeiro-ministro israelita experimentaria as quatro paredes de uma cela. O próprio Ehud Olmert, condenado a mais de dois anos de prisão por suborno e fraude, crimes cometidos enquanto presidente da câmara de Jerusalém, acabaria por cumprir 16 meses de cadeia.

Entretanto, pelo menos desde 2018, são vários os casos que mereceram a investigação da polícia: num primeiro, o primeiro-ministro Netanyahu e a sua mulher são suspeitos de aceitar subornos de milionários e homens de negócios. Benjamin e Sara Netanyahu teriam sido comprados com prendas, charutos e joalharia, na ordem das centenas de milhares de shekels. O segundo aponta a alegados negócios entre Netanyahu e o dono do diário israelita Yedioth Ahronoth, que estaria instruído para publicar histórias favoráveis ao Governo. Em troca, o gabinete de Netanyahu empenhava-se em dificultar a vida ao Israel Hayom, um jornal concorrente do Yedioth. Benjamin Netanyahu atirou desde logo com a sua arma de defesa predilecta: “É difamação (…) Atacaram a minha mulher e os meus filhos de forma brutal para conseguirem atingir-me”.

Apesar de todas as manobras do primeiro-ministro, em 2019 o procurador-geral acusou Netanyahu por suborno, fraude e abuso de confiança em três diferentes casos de corrupção. Num destes casos, chamado de “4000” ou “Bezeq”, nome de um grupo de telecomunicações israelita, Netanyahu é suspeito de conceder favores que terão rendido milhões de dólares ao proprietário da empresa Bezeq em troca de uma cobertura mediática favorável no portal Walla, que faz parte do grupo.
Netanyahu precisa de terapia “para voltar a ser um ser humano”

E é no trilho destas alegadas irregularidades que Olmert se permite declarações sarcásticas como aquela em que, questionado sobre se esperava de facto que Netanyahu viesse a cumprir uma pena de prisão, respondeu ser “a favor de que Netanyahu, a sua mulher e o seu filho fossem submetidos a um tratamento para que pudessem tornar-se de novo seres humanos”.

Ehud Olmert, no artigo de opinião desta quinta-feira no jornal israelita The Jerusalem Post, dedica-se a escalpelizar os pequenos pormenores do quotidiano civil do clã Netanyahu para desembocar na conclusão de que todas as decisões da família obedecem a um único princípio: colocar a máquina do Estado de Israel, os serviços de segurança e a polícia ao serviço dos seus interesses particulares. E muitas vezes, escreve, lamentavelmente triviais.

Um dos exemplos que apresenta na autópsia do modus vivendi dos Netanyahu tem a ver com a recuperação de umas centenas de shekels (1 shekel equivale a 0,25 euros) com a reciclagem de garrafas de plástico que na verdade pertencem ao Estado, já que se trata de bens concedidos a Netanyahu como primeiro-ministro.

Mais grave será, de acordo com Olmert, a encomenda de refeições muito dispendiosas ou as ofertas de que a família é objecto e que – garante o antigo primeiro-ministro – são incentivadas, “primeiro uma caixa de champanhe, depois um camião e a seguir charutos e jóias caríssimas”. Este último foi, de resto, um dos casos que colocaria os Netanyahu sob o radar.

Independente da dimensão dos alegados delitos – “tudo começa com pequenas coisas, como por exemplo quando o PM, a sua mulher e membros da família roubam pequenas quantidades de dinheiro do Tesouro” –, Olmert adverte que estamos perante indícios de uma teia maior, uma confusão de privilégios que chega a toda a máquina do Estado e que ameaça erodir o que ainda resta da democracia israelita.

“Em breve, ficaremos tomados de surpresa quando se tornar claro que o elemento mais fundamentalmente básico que permitiu ao Estado de Israel tornar-se um país forte, estável, credível e amado, apesar de todas as nossas fraquezas expostas, está a desaparecer das nossas vidas: a democracia”, escreve Ehud Olmert.
Tudo em nome do Estado

Ao longo do seu texto, o antigo primeiro-ministro desfia a argumentação que passa por uma balança com dois pratos, de um lado a questão da estabilidade e segurança do Estado de Israel, do outro os interesses de Benjamin Netanyahu. A forma como os israelitas olharem para este cenário, adverte Olmert, determinará as hipóteses de sobrevivência do país como um Estado democrático.

Para lá das acusações contra o actual primeiro-ministro, Ehud Olmert insiste neste tom de advertência, na prioridade de desfazer este nó que amarra os interesses de Netanyahu aos interesses de Israel, para no fim subsistirem apenas os primeiros.

“Pedir que os serviços secretos do país rastreiem os civis como forma de localizar indivíduos que foram expostos ao vírus COVID-19 é uma coisa, mas rapidamente se torna claro que esta alegação é infundada”, exemplifica Olmert, para denunciar a utilização dos serviços do Shin Bet e da polícia para silenciarem qualquer movimento contestatário, qualquer iniciativa que coloque em causa o actual statu quo da liderança israelita.

“A obtenção desta informação não ajudará a diminuir o número de pessoas que são infetadas com o vírus. Poderia, no entanto, expor os cidadãos a um acompanhamento constante por parte dos organismos governamentais. Assim, seria possível aproveitar esta informação para assuntos que nada têm a ver com a epidemia COVID-19, identificando cidadãos que têm razões para recear ser assediados pelas autoridades”.
“Eles devem ser parados”

Ehud Olmert vê o desenho acabado em que a polícia poderá vir a ser controlada a partir de nomeações que impedirão aquela força de apontar o dedo a eventuais irregularidades do gabinete do primeiro-ministro ou do governo, como será o caso da Divisão de Investigação: “É conhecida em certos círculos como a inimiga do governo”, já que “os investigadores desenterraram casos contra o primeiro-ministro, a sua mulher e, provavelmente, no futuro, contra o seu filho”, escreve o antigo líder israelita, com a nota de que é claro que a ideia é de que este departamento de investigação seja impedido de fazer este tipo de trabalho.

“Eles devem ser travados (…) os investigadores perigosos que há entre eles, que poderiam ser usados por opositores do primeiro-ministro, precisam de ser filtrados”, refere Olmert, temendo ser esse o destino de uma polícia independente, substituída por “pessoas que saibam congelar as investigações, que não estão realmente interessadas em submarinos, ou na forma como o primeiro-ministro ganhou 16 milhões num curto espaço de tempo de um investimento que fez com o dinheiro que recebeu do primo e depois investiu na empresa do primo. Investigadores que não se apressam a investigar porque é que o primeiro-ministro não reportou os rendimentos à autoridade tributária, ou a pagar impostos como é obrigado por lei (…)”.

Olmert considera assim que o que está em causa é “a separação absoluta entre o que é bom para o primeiro-ministro e a sua família, e o que serve as suas necessidades privadas, e o que ajuda os cidadãos que ele está destinado a proteger (…) As normas precisam de caracterizar uma nação democrática que funcione com base na igualdade entre todos os cidadãos”.

E “nós não estamos no início deste processo – já está em curso”, alerta Ehud Olmert, antevendo que tudo poderá acabar nas ruas com “um banho de sangue”, já que “Netanyahu está a usar o poder que lhe foi estendido como líder para esmagar quem se lhe tentar opor”.
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