"Não consigo ter pena". Ex-colónias britânicas relembram passado colonial após morte de Isabel II

por Joana Raposo Santos - RTP
Para muitos, o legado colonial foi representado pela rainha e continuará agora a sê-lo pelo sucessor, Carlos III. Foto: Ed Sykes - Reuters

Enquanto, no Reino Unido, grande parte dos britânicos prestam homenagem a Isabel II após a sua morte, das antigas colónias chegam sentimentos mistos sobre o falecimento da rainha. Alguns dizem mesmo não conseguir ter pena, sentindo ainda as profundas marcas do colonialismo que coincidiu com parte do reinado da antiga monarca. Outros lamentam que Isabel não tenha pedido desculpa pela escravatura.

Quando chegou ao trono, em 1952, Isabel II recebeu como herança milhões de súbditos, não só no Reino Unido, mas por todas as colónias até às quais o império britânico se estendia. Sete décadas depois, as ex-colónias continuam a lidar com sentimentos de revolta e muitos dos que lá vivem não conseguem ter pena da rainha.

Apesar das condolências oficiais prestadas pelos líderes desses países, essencialmente africanos, asiáticos e caribenhos, entre a população o sentimento é agridoce. O falecimento da monarca, agora substituída pelo filho Carlos III, voltou a trazer à tona a discussão sobre o legado do colonialismo, passando pela escravatura e pelos artefactos históricos açambarcados por instituições britânicas.

Para muitos, esse legado foi representado pela rainha durante os seus 70 anos de reinado e continuará agora a sê-lo pelo sucessor.

No Quénia, uma dessas antigas colónias – e local onde Isabel II ficou a saber da morte do pai, um ano antes de ser coroada –, a advogada Alice Mugo partilhou nas redes sociais um documento de 1956, altura em que Isabel II já era rainha, no qual se lê o título “licença de movimentação”.

Ou seja, na mesma altura em que mais de 100.000 quenianos estavam presos em campos sob condições precárias, os que podiam movimentar-se de um local para outro tinham de pedir autorização ao Reino Unido para o fazerem.

“A maioria dos nossos avós foi oprimida”, escreveu Mugo no Twitter na quinta-feira, dia da morte da rainha Isabel. “Não consigo ter pena”.


Da Jamaica também chegaram condenações aos abusos britânicos cometidos no passado. “Nesta Commonwealth de nações, a riqueza (wealth) pertence à Inglaterra. Essa riqueza nunca é partilhada”, defendeu publicamente Bert Samuels, membro do Conselho Nacional de Reparações do país, entidade criada em 2009 pelo Governo jamaicano para tentar reparar as “injustiças sofridas pelos descendentes de escravos”.
Símbolo da transição pacífica ou do passado colonial?
Isabel II presenciou, durante o seu reinado, a vitória de países africanos, do Gana ao Zimbabué, pela independência. Vários países e ilhas das Caraíbas seguiram o mesmo caminho.

Se, por um lado, alguns louvam a monarca por conseguir uma transição pacífica do império para a Commonwealth – associação de 56 países ligados pelo passado colonial -, outros veem-na como símbolo de uma nação dominadora e insensível.

Do Médio Oriente chegou mesmo a exigência de um pedido de desculpas, com os governantes do movimento Hamas, na Faixa de Gaza, a pedirem no sábado ao rei Carlos III que “corrija” as decisões do mandato britânico que terão “oprimido os palestinianos”.

Isto porque muitos responsabilizam o Reino Unido por ações coloniais que delinearam grande parte das fronteiras da região e lançaram as bases para os atuais conflitos que lá se vivem.

No Chipre, muitos cipriotas gregos relembraram, após a morte da rainha, a campanha de guerrilha de quatro anos travada no final da década de 1950 contra o domínio colonial. Frisaram também que Isabel II mostrou então “indiferença” pelas nove pessoas que acabaram executadas pelas autoridades britânicas.
“Não existe lugar para reis e rainhas no mundo de hoje”
Além das críticas, o falecimento da monarca britânica traz agora também novas tentativas para apagar o passado colonial. Na Índia, o Governo de Narendra Modi está a promover a remoção de nomes e símbolos coloniais.

“Acredito que não existe lugar para reis e rainhas no mundo de hoje, até porque somos a maior democracia do mundo”, considerou o empresário indiano Dhiren Singh em entrevista à agência de notícias Associated Press.

Em Nairobi, o cidadão queniano Max Kahindi relembrou, por sua vez, a chamada Rebelião dos Mau-Mau, movimento que entre 1952 e 1960 procurou libertar o país de um Reino Unido colonizador.

“Há muita amargura” em torno desse passado, admitiu à AP, lembrando que até alguns idosos foram então presos ou mortos pelas autoridades britânicas. “Mas a rainha era muito jovem”, desculpou, porém, o queniano, acreditando que seria outra pessoa a tratar desses assuntos nessa altura do reinado de Isabel II.

“Não podemos culpar a rainha por todo o sofrimento sentido nesse período específico”, acrescentou.
“Ela devia ter pedido desculpa”
Nas Caraíbas, os esforços para deixar para trás a história colonial têm ido ainda mais longe. Nos Barbados, por exemplo, a monarca britânica foi o ano passado removida do cargo de chefe de Estado e a ilha passou finalmente a república, apesar de continuar a pertencer à Commonwealth.

A Jamaica também já anunciou o seu interesse em tornar-se totalmente independente, comunicando a decisão ao príncipe William – agora herdeiro ao trono – e à mulher Kate ainda este ano, durante uma visita do casal real à ilha. Nessa ocasião, William terá expressado aos jamaicanos a sua “profunda tristeza” pela escravatura de outrora.

Segundo a ativista Nadeen Spence, a opinião dos jamaicanos sobre Isabel II divide-se: enquanto os mais velhos viam a rainha como “uma pessoa benevolente que sempre cuidou deles”, os cidadãos mais jovens desvalorizam o papel da monarquia.

“A única coisa que notei sobre a morte da rainha foi que ela faleceu sem ter pedido desculpa pela escravatura”, admitiu Spence à AP. “Ela devia ter pedido desculpa”.

c/ agências
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