O medo no pós-Roe v. Wade. Mulheres apagam apps de rastreamento da menstruação

por Joana Raposo Santos - RTP
Foi na última sexta-feira que o Supremo Tribunal reverteu a Roe v. Wade, decisão judicial de 1973 que atribuiu às mulheres o direito constitucional ao aborto. Evelyn Hockstein - Reuters

Nos Estados Unidos, os efeitos da reversão do direito constitucional ao aborto continuam a fazer-se sentir. Desde a revogação da Roe v. Wade pelo Supremo Tribunal, na última sexta-feira, muitas mulheres norte-americanas decidiram apagar as suas contas em aplicações que rastreiam a menstruação, por medo de que os dados recolhidos pelas apps possam ser usados contra elas em casos judiciais. Entre a população pró-escolha crescem ainda os receios de violência policial durante os protestos que estão a registar-se por todos os EUA.

A eliminação das aplicações de rastreamento da menstruação por mulheres nos Estados Unidos começou já no mês passado, quando veio a público a intenção do Supremo de pôr fim a um direito constitucional com quase 50 anos. Desde sexta-feira, porém, a tendência intensificou-se.

Aplicações como a Flo ou a Clue são muito populares entre mulheres de todo o mundo que pretendem rastrear os seus ciclos menstruais. Têm, no entanto, um senão: recolhem dados das utilizadoras, o que numa era pós Roe v. Wade está a suscitar receios.

Em Estados norte-americanos onde o aborto é agora crime, os procuradores podem solicitar as informações recolhidas por estas apps para ajudar a construir uma acusação contra uma mulher. “Se estiverem a tentar acusar uma mulher de realizar um aborto ilegal, eles podem exigir acesso a qualquer aplicação nos seus dispositivos, incluindo rastreadores menstruais”, explicou ao Guardian a advogada e ex-procuradora Sara Spector.

Para combater este receio, as aplicações em questão poderão atualizar as suas políticas de privacidade, alterando o modo como usam os dados e a duração pela qual os guardam. Um estudo de 2019 publicado na British Medical Journal descobriu que 79 por cento das aplicações da área da saúde na Play Store (loja de aplicações da Google) estavam relacionadas com medicina, nomeadamente apps de gestão de medicamentos, fornecimento de informações médicas ou rastreamento menstrual.

Este tipo de apps é popular entre mulheres de todo o mundo que pretendem melhorar o planeamento familiar, controlar o seu calendário menstrual ou detetar precocemente problemas de saúde. Só nos Estados Unidos, quase um terço das mulheres utiliza uma destas aplicações, segundo uma sondagem de 2019 da Kaiser Family Foundation.

Nos EUA, as duas aplicações de rastreamento mais populares são a Floe e a Clue, que, em conjunto, possuem mais de 55 milhões de utilizadoras. A Clue, com sede em Berlim, disse já estar “comprometida a proteger” os dados privados de saúde das utilizadoras.

“Estamos e sempre estivemos comprometidos a proteger os vossos dados privados de saúde. A vossa experiência de rastreamento deve empoderar-vos, sejam quais forem as vossas decisões de saúde. Nunca permitiremos que alguém use essa experiência contra vocês”, assegurou a app no Twitter.

A organização sem fins lucrativos Planned Parenthood, que fornece cuidados de saúde reprodutiva essencialmente nos Estados Unidos, já encorajou as mulheres no país a utilizarem a sua app Spot On, garantindo anonimato.
Crescem os receios de violência policial contra ativistas
Outro medo crescente após a revogação da Roe v. Wade é o da retaliação policial contra ativistas pró-aborto, numa altura em que os protestos no país se multiplicam. No geral estas manifestações têm sido pacíficas, mas contam-se já alguns episódios de violência.

Nos últimos dias foram vários os casos de polícias a empunhar bastões e a remover à força pessoas de espaços públicos. No Estado do Arizona foi mesmo disparado gás lacrimogéneo sobre os participantes que se concentravam diante do Capitólio. Mais tarde, a polícia lançou um comunicado no qual justificou a ação com o medo de que os ativistas tomassem o edifício.

Em Nova Iorque, mais de 20 ativistas pró-escolha foram detidos durante protestos e, na Carolina do Sul, seis pessoas foram detidas e algumas ficaram feridas em confrontos com as autoridades. Num vídeo que circula pelas redes sociais pode ver-se um agente a alegadamente ameaçar uma mulher com uma máquina de taser e um outro a atirar um idoso ao chão.

No Estado do Iowa foi um civil quem conduziu um camião na direção de manifestantes, deixando uma mulher hospitalizada.
Estados pró-vida forçados a adiar proibição do aborto
Foi na última sexta-feira que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos reverteu a Roe v. Wade, decisão judicial de 1973 que atribuiu às mulheres o direito constitucional ao aborto. O futuro da saúde reprodutiva das mulheres passou, assim, a estar nas mãos dos governadores norte-americanos – e quase metade destes já tinham preparadas leis-gatilho para proibir o aborto assim que o Supremo desse luz verde.

No Louisiana, uma clínica de abortos e um grupo de estudantes de medicina atacaram rapidamente as três leis que o Estado quis pôr em prática para proibir a interrupção voluntária da gravidez, argumentando que estas eram “demasiado vagas” por não especificarem as exceções ou as consequências associadas à prática.

Assim sendo, o juiz Robin Giarrusso suspendeu temporariamente na segunda-feira as leis em questão até que seja realizada uma audiência, agendada para 8 de julho.

“Os abortos podem voltar a ser permitidos no Louisiana”, escreveu no Twitter o Centro de Direitos Reprodutivos, que representava os queixosos. “Cada dia que uma clínica está aberta pode fazer a diferença na vida de alguém”, disse a presidente da entidade, Nancy Northup, em comunicado.

Esta vitória pode, porém, ser de curta duração, visto que o procurador-geral do Louisiana, Jeff Landry, prometeu “fazer tudo ao seu alcance para garantir que as leis que protegem os nascituros entrem em vigor”.

Batalhas legais semelhantes estão em curso também nos Estados do Ohio, Kentucky, Idaho, Texas ou Mississippi, onde os governadores aguardam permissão para pôr em prática a proibição do aborto.
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