Quem não quer ser lobo...

O caso é complexo e merece ser tratado nas suas mais diversas vertentes de forma separada para que não se misturem as águas e se entre em juízos confusos.

1. O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais não devia ter aceitado o convite da GALP para ir ver os dois jogos do Europeu de França deste verão. Por duas razões: por uma questão de ética e outra de bom senso.

Um membro do governo, que representa o Estado, não aceita convites de empresas que estão em litígio com o próprio Estado e que no caso concreto deve em apenas dois impostos não pagos o equivalente a 100 milhões de euros. Ou seja, há um litígio e habitualmente os litigantes não se convidam para viagens a não ser que exista um objectivo concreto.

Quando se recebe um convite desta natureza deve questionar-se a intenção de quem convida e a percepção de quem vai saber do convite.

Acredito que Rocha Andrade tenha pensado duas coisas quando recebeu o convite, ambas erradas: que várias pessoas recebem e aceitam, mesmo quando exercem funções governativas, e que sabe bem aproveitar estas borlas enquanto dura o cargo que as justifica. Poderá até ter acreditado que não se deixaria condicionar no futuro.

Rocha Andrade não percebeu o que estava em causa e por isso entendeu que pagando o valor das viagens à GALP o caso estaria resolvido. Não está. Porque as duas viagens já se realizaram e porque falta um pedido de desculpas público por ter sido leviano e insensato, coisa grave para pessoas com tanta experiência que chegam a cargos governativos. A demissão é uma questão de consciência. Dele e do primeiro-ministro, como já aconteceu em muitos outros casos.

2. O PSD e o CDS cavalgaram de imediato a habitual onda populista e demagógica que tanto agrada aos partidos. PS, PCP e BE fazem-no em sentido contrário para defesa do executivo.

O CDS foi mais longe e pediu mesmo a demissão do secretário de Estado, esquecendo que foi o mesmo partido que apoiou vários membros do governo anterior que se deviam ter demitido de imediato e não o fizeram. Paulo Núncio será talvez o caso mais grave e lamentável do consulado anterior.

No PSD as pedras atiradas para os telhados dos vizinhos acabaram por partir as telhas na própria casa. Quando pediu explicações, Leitão Amaro não imaginava, ou imaginava e acha que é diferente, que três dos deputados do Grupo Parlamentar do PSD foram também ao Europeu a convite de um grande empresário cá do burgo.

Sendo diferentes do caso do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, são casos igualmente graves, porque um deputado representa e defende o Estado e toma decisões que podem afectar ou beneficiar os grandes grupos empresariais. Por isso qualquer parlamentar deve recusar convites equívocos e manter uma distância higiénica em relação a convites desta natureza.

3. O país, que comenta tudo mas que parece nunca saber de nada, descobriu agora, vejam bem, agora, que há verdadeiras pontes aéreas para europeus e mundiais pagas pelos principais patrocinadores da Selecção Nacional. Desde tempos imemoriais que vão políticos em geral, governantes, autarcas, dirigentes partidários, gestores e jornalistas. Vão todos? Não. Vão os convidados. Critério? Não sei. Mas o país, vejam bem, descobriu agora e indignou-se. Ninguém sabia. Incrível!

Mesmo com os directos e reportagens no aeroporto nos dias das partidas e as fotos vaidosas nas redes sociais em plena bancada. Ah, ninguém sabia quem pagava. Ok. Pensavam que eram mesmo os próprios ou que essas empresas fazem mecenato e caridade?

Já agora, podemos conhecer os convidados dessas empresas nos últimos europeus e mundiais? Só para percebermos a coisa na sua verdadeira dimensão e sabermos se há gente a fingir que nunca foi?

Mas ainda não decidi o que é pior, se a insistente falta de ética e bom senso da generalidade dos nossos políticos ao longo dos anos, mesmo quando assumem funções governativas, ou a nossa popular hipocrisia sempre oportuna para defender os nossos - mesmo que façam as maiores diabruras - e triturar os outros, de quem não gostamos.

4. Há anos que toda a gente critica as relações de promiscuidade entre alguns políticos, empresários e jornalistas. Há anos que os jornalistas escrevem e denunciam as situações que envolvem políticos e empresários, mas não há denúncias de casos com jornalistas. E há muitos. Desde o pequeno favorzinho aos grandes relacionamentos de proximidade duvidosa que geram dependência ou pelo menos a suspeita de que exista.

Há jornalistas que habitualmente fazem reportagens de desporto que pedem um bilhetinho para o futebol aos clubes, lugares para camarotes de estádios a empresas que estão na berra pelas piores razões, que pedem às marcas carros para fins de semana e férias fora dos habituais test-drive promovidos pelas marcas, que exigem, pedem ou pedincham gadgets às empresas tecnológicas quando fazem reportagens que na maior parte das vezes não passam de publicidade travestida de jornalismo. Durante anos, em especial na área económica, eram habituais as prendinhas de valor elevado e ninguém questionava nada. Situações que geram dependência e limitam a autonomia.

Se refiro estes casos é para dizer uma coisa simples. Não há virgens puras. As relações de interdependência são uma característica da vida em sociedade, e há uma fronteira fina como o gelo entre o que é ético e sensato e o que é perigoso e leviano. Nem sempre, eu incluído, tomamos as melhores opções. Numa altura em que os projectos de jornalismo do sector privado dependem cada vez mais da boa vontade dos investidores, e da aprovação de projectos que gerem valor, há que ter um cuidado ainda maior para não quebrar a fina barreira de gelo que nos separa da pouca vergonha. Não é fácil, para ninguém, e por isso devemos fugir das situações equívocas e perigosas como o diabo da cruz.

5. O que precisamos mesmo, além de bom senso e ética, é de um real e efectivo código de conduta para titulares de cargos públicos que evitem estas situações. Além da vigilância dentro das próprias corporações para evitar as promiscuidades que ferem os códigos éticos e deontológicos.

O actual regime de incompatibilidades que existe é correcto, o que é grave é tudo o que lá falta em termos de regulação e o que permite. Foi feito à medida, obviamente.

Quem nunca prevaricou nestes aspectos agora abordados que atire a primeira pedra. Mas cuidado com o efeito boomerang.

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