Resistir é preciso

A profissão de jornalista é cada vez mais maltratada por todas as razões. A maior parte das pessoas que decidiu abraçar esta profissão está cada vez mais sujeita à instabilidade, insegurança e fragilidade nos vínculos com as empresas empregadoras e na vida em geral, que se torna precária e incerta.

Com a crise severa que se vive, a redução dos valores da publicidade e das vendas colocaram algumas empresas em situação difícil, a precariedade aumentou e o recurso a trabalhadores de empresas externas - o chamado outsourcing - é cada vez maior. Ficamos todos a perder. As empresas que abdicam de trabalhadores qualificados, às vezes alguns dos melhores, e os trabalhadores dessas empresas externas que são cada vez mais mal pagos. São pessoas que trabalham cada vez mais horas e sem muitos dos direitos mais básicos. Em muitos casos se os reclamam acabam por ser substituídas por outras que aceitam as condições impostas. Nesta cadeia de factores negativos a experiência vai sendo cada vez menor com as consequências previsíveis para a qualidade do produto apresentado, cada vez pior.


A concentração cada vez maior de vários títulos em alguns, poucos, grupos económicos - boa parte deles estrangeiros - é uma ameaça cada vez maior à autonomia dos jornalistas devido à baixa diversidade dos empregadores. A estratégia seguida é contrária aos interesses do jornalismo puro: o objectivo é criar valor a todo o custo, mesmo que para isso seja prejudicada a arte de fazer notícias com todas as regras exigidas pelos códigos éticos e deontológicos, que na verdade quase ninguém já lê.

Os últimos dados do inquérito intitulado 'Os jornalistas portugueses são bem pagos? Inquérito às condições laborais dos jornalistas em Portugal', realizado pelo ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, em parceria com o Sindicato dos Jornalistas e o Obercom, são aterradores.

A maior parte dos profissionais do jornalismo, qualificados e licenciados na esmagadora maioria, recebe menos de mil euros líquidos por mês, e um terço trabalha com vínculo precário.

Em 2016, 69% dos jornalistas recebiam entre 501 e 1.500 euros líquidos por mês e, destes, 23,3% recebiam entre 1001 e 1.500 euros, 23,9% entre 701 e 1.000 euros e 21,8% menos de 700 euros.

57,3% dos jornalistas ganham menos de mil euros, apesar de o rendimento mensal médio líquido ser de 1.113 euros.

11,6% dos jornalistas recebem menos de 500 por mês e, desses, 7% nem sequer recebem 300 euros.

19,4% dos jornalistas recebem mais de 1.500 euros mensais, sendo que, destes, 10,8% ganham até 2.000 euros, 3,6% até 2.500 euros e só 5% auferem um valor superior.

Os autores garantem que este é o mais recente e abrangente inquérito realizado em Portugal, e que foram questionados quase 1.500 jornalistas.

Dos inquiridos, 87,5% encontravam-se a trabalhar, enquanto 7,9% estavam em situação de desemprego, 2,2% estavam reformados e 2% em estágio.

Em 2016, os contratos de trabalho dos jornalistas em Portugal eram maioritariamente de 35 a 40 horas semanais, mas 27,7% afirmaram não saber a carga horária semanal prevista nos contratos e a maioria assumiu trabalhar mais de 40 horas por semana. Apenas 3,9% são remunerados pelas horas extraordinárias e quase dois terços do total não têm qualquer compensação pelo trabalho extraordinário.

A progressão na carreira dos jornalistas inquiridos parece quase impossível. Mais de 80% não têm progressão há mais de quatro anos, mesmo nas empresas de comunicação social onde ela está prevista.

Quase dois terços dos jornalistas inquiridos já pensaram, pelo menos uma vez, abandonar a profissão.

Não estou no grupo de jornalistas que ganha um ordenado miserável, mas fui também precário no início da minha carreira há 27 anos e hoje, desiludido com muitas coisas, já ponderei abandonar o barco. Tempos diferentes, em que era possível acumular vários empregos e vários ordenados, mas em que era preciso trabalhar horas demais, sábados, domingos e feriados, para ter um ordenado decente ao final do mês. Tempos em que estando insatisfeitos mudávamos de local de trabalho com relativa facilidade. Falhei dezenas de festas de família e aniversários de amigos, festas e viagens, mas abracei esta profissão com unhas e dentes desde o primeiro dia, e por isso abandonei o curso de Direito logo no início do 3.º ano e tive de sofrer as habituais consequências na vida afectiva e familiar.

Fico triste pelo estado actual a que chegou, globalmente, o jornalismo em Portugal, e não vejo melhoras.

Sim, ainda se faz muito jornalismo de qualidade e há muitos profissionais de excelência, mas os efeitos dos seus trabalhos começa a perder-se no meio do turbilhão em que entrámos.

O advento das redes sociais trouxe muitas vantagens, muitos problemas e novos desafios ao jornalismo, mas a base não muda por muito que muitos nos tentem convencer do contrário. A coragem para informar, a qualidade do produto, o rigor, a isenção, a seriedade, a credibilidade e a objectividade são princípios sagrados que não devem admitir concessões. Há demasiadas e, como digo, o que resiste de bom começa a ser escasso.

Há gente nova com muita qualidade a chegar, mas temo pelo seu enquadramento, pela falta da orientação mais correcta e pela falta de "formatação" a princípios e valores que até muitos dos mais experientes, e antigos, já não respeitam. O currículo também parece muitas vezes não fazer a diferença no momento das escolhas, e esse também é um sinal de precariedade. A escolha dos amigos e dos obedientes em detrimento dos mais competentes e preparados é muitas vezes o critério adoptado sem que exista já uma efectiva capacidade de protesto nas redacções. 

O medo tem muitas faces, as responsabilidades familiares muitas vezes falam mais alto e para resistir é preciso estar preparado para enfrentar duras privações e um deserto que muitas vezes acaba no desemprego. Sem experiência, sem memória, sem exigência e com erros permanentes difíceis de desculpar as redacções vão tornar-se aglomerados de pessoas que em poucos anos vão perder um valor essencial e inestimável do jornalismo: o respeito de quem nos vê, ouve e lê. Perder é fácil, recuperar poderá demorar décadas. 

O grande desafio é resistir e tentar inverter processos, mas a luta é contra uma máquina poderosa já instalada e que pensa quase exclusivamente no lucro e pouco na qualidade do produto.

Admiro a boa vontade da organização do 4.º Congresso dos Jornalistas Portugueses, o primeiro em 18 anos, mas temo que para além de alertar algumas consciências este Congresso pouco possa fazer de concreto por esta nobre profissão, e por tantos problemas que nos afligem. Oxalá esteja completamente enganado.

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