Casamento por conveniência

Não contaram nada a ninguém, mas todos sabiam que andavam a encontrar-se às escondidas. Deixaram os detalhes para outros, reservaram o fim do dia, o lusco-fusco que encanta escritores, apaixona pintores, hipnotiza realizadores… para anunciar a união. Abraçaram-se no crepúsculo da Puerta del Sol em Madrid. As imagens foram divulgadas em direto, nas redes sociais. Só não pode dizer-se: vão ser “felizes para sempre”.

Pablo vestia um impermeável escuro, Alberto optou pelo blusão de cabedal castanho. Cada um gravou um vídeo a caminho da praça, a anunciar um projeto, uma alternativa, uma união, uma “surpresa” a bem de Espanha. Os dois “filmes” passaram a mostrar os mesmos protagonistas quando Pablo Iglesias e Alberto Garzón se cruzaram e abraçaram com entusiasmo. Pareciam velhos amigos. Amigos de toda uma vida. Ninguém diria que foram rivais. Um abraço aplaudido pelo “staff” do Podemos, do Izquierda Unida e pelos fotógrafos que, especificamente, foram chamados para registar o momento. E foi ali, abraçados, entre a estupefação de muitos transeuntes, os cliques das câmaras de telemóveis, que convidaram militantes, simpatizantes a participar num encontro mais alargado num dos bairros da moda de Madrid, o de Lavapiés, onde explicaram o pacto e beberam umas cervejas. O casamento estava anunciado, a festa feita, os papéis ainda por assinar, a união por consumar.

Na sede do PSOE, em casa, dentro do carro a caminho de um ato de pré-campanha, Pedro Sanchéz terá seguido a cerimónia desconcertado, com a ira de um parceiro atraiçoado. Quatro meses passados sobre tentativas de acordo, de união… Dois meses depois de Iglesias, em plena sessão de investidura e depois de ter beijado na boca o líder do En Común Podem, lhe ter dito “Fluye el amor en la política. Pedro, solo quedamos tú y yo”, foi trocado por outro. Muito haveria para dizer sobre as negociações, as contradições do lado dos socialistas e do Podemos, as exigências, as propostas e contra propostas, as clivagens que sempre os vão distanciar.

Sem fazer qualquer espécie de luto, não há tempo para isso, Iglesias e Garzón abraçaram-se à frente de todos. Só passaram 10 meses, mas longe parece estar o verão de 2015, quando Iglesias chamava a Garzón o “pitufo Gruñón”, algo que podemos traduzir para o “smurf amuado” e culpava o IU de “cinzentismo, de responsabilidade por Espanha não mudar”. Amuos à parte, entre muitas outras questões que, para não ser fastidiosa, não vou abordar, há aqui uma relação de afetos aritmética. Se recuarmos às eleições de 20 de dezembro, a soma dos 5.189.333 votos do Podemos, e dos partidos que a ele se coligaram, mais os 926.738 votos da Unidade Popular (Izquierda Unida), ou seja, 6.116.116 votos, teria deixado o PSOE em terceiro lugar (5.543.315 votos). Sendo assim, não é difícil perceber por que razão, apenas uma delas, se abraçam Iglesias e Garzón.

José Ignacio Torreblanca, doutor e investigador em Ciência Política, escreve no “El País” de 10 de maio, “não se trata apenas de encurralar o PSOE e marginaliza-lo, mas sim algo mais ambicioso e inteligente: substituí-lo de forma não traumática por um novo partido de massas”.

Enquanto Mariano Rajoy (por agora) e Albert Rivera, sentados confortavelmente no topo do PP e do Ciudadanos observam estas movimentações, Pedro Sanchéz sabe que está a jogar a última cartada. Sabe que a noite de 26 de junho pode ser a derradeira como secretário-geral do PSOE, a noite da demissão, a noite do ponto final nas aspirações de quem acreditou que podia ser Presidente do Governo de Espanha, mesmo com o pior resultado de sempre alcançado pelos socialistas: 90 deputados e uma sessão de investidura fracassada, a primeira nos anais de Espanha. Se “eles” consumarem a união, está condenado ao divórcio da liderança de um partido que, ironicamente, foi fundado por outro Pablo Iglesias.

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