Também me estreei a perder num Mundial

5 de Junho de 2002. Um estádio cheio de portugueses... diferentes.

Amaldiçoei mil vezes o trânsito inacreditável de Seul, até ter que fazer os quase 100 km entre a capital da Coreia e Suwon, o palco do primeiro jogo. Afinal, o tráfego de Seul era um menino! Ali, trânsito é nome inexacto e irónico, tão bloqueado que NÃO ocorria! Cinco faixas de autoestrada para cada lado e, apesar disso, até um caracol faria vento ao passar por mim... E a placa, ditadora, exasperante: 98 km para Suwon. E não, não era por ser no Estádio Grande Pássaro a nossa estreia no Mundial. Para o provar, havia ervas sob aquela roulotte de sandes de cobra frita, estacionada há gerações no separador central. Pronta a servir em andamento - tão veloz o andamento era! - a fome circunstancial dos impávidos e irritantemente serenos condutores daquela terra de muitos milhões.

Fui tão cedo que cheguei mais que a tempo.

O troar dos Chinook sobre o estádio, assinava o estado de alarme máximo. Era a primeira presença de uma representação dos Estados Unidos num grande evento no exterior, depois do 11 de Setembro. Azar o meu, contra Portugal. Segurança máxima, fila de escala épica para a revista metódica. Mais de uma hora até ao pórtico detector de metais. Mochila esmiuçada, bolsos idem, camera ibidem, microfone ainda mais. Passámos e levámos um autocolante como prova da nossa limpidez. Irónico... Para ter que sair logo a seguir, parte do material às costas. Era preciso reportar o interesse do público antes do jogo. E... que público!

Um mar vermelho e verde. Sim, vermelho e verde. Mas juro que nunca vi nem verei outro público "luso"assim. Já se imaginaram repórter português, engolido por um mar de milhares, equipados com as cores nacionais... sem poder trocar UMA palavra na língua-mãe com qualquer deles? Os olhos rasgados ensinavam que era escusado tentar: eram TODOS sul coreanos. TODOS. Ou, não sendo todos, eram em tão esmagadora maioria, que mais depressa me sairia o Totoloto (se jogasse) que descobriria um portuga de gema. Fez-me espécie e muita. Aos que arranhavam mal o inglês, ainda perguntei: Why for Portugal? Porquê por nós? Quanto muito, sorrisos embaraçados por resposta. Tardou muitos dias a tê-la, mas tive. Explicou-me uma ansiã, traduzida por um amigo novo em surdina: Estavam silenciosamente fartos de, tantos anos depois da guerra da Coreia, ainda terem que alojar tantos milhares de soldados americanos (menos a eles que aos seus vícios e hábitos ocidentais, na verdade) em sua casa. Ou seja: Estavam menos por nós... mais contra ELES.

 Voltei para o estádio, pronto a sofrer nova hora na fila. Errado. Um dos muitos mil militares viu-nos no fundo da dita e mandou-nos avançar. Passar por todos.

- Porquê?? -  perguntei-lhe abismado .

- Tens o autocolante. Já foste revistado. Podes passar! Vai! VAI!

Só se fosse doido como eles é que dissertaria sobre o  perigo de usar tão absurda garantia para acreditar que eu não tinha uma bomba novinha para levar para dentro. Limitei-me a engolir a certeza de que a segurança deles era apenas mais uma boa piada. Segui e calei. Entrei. Relvado comigo!

Foi assim, no centro acústico de um mar vermelho e verde que gritava em coreano por Portugal, que me estreei no relvado de um Mundial. Atrás da baliza do Baía, de frente para o ataque. De frente para eles, vi 3 bolas passar para dentro dela. Da nossa baliza. Direitos a mim! Reportei em direto, sofri e engoli o resto. E nas bancadas, eles nunca desistiram de gritar por nós. Sempre por nós. De vermelho e verde. Um mar vermelho e verde perdeu 3-2 com os Estados Unidos, como eu, o seu primeiro jogo de Portugal num Mundial. Saíram de sorriso bem menos moderado que as minhas trombas, ocultas por trás de um ar pretensamente distante e profissional. O clima de Suwon era abafado, talvez menos que o de Manaus. Mas garanto: mais abafei com o sentimento envergonhado de não lhes termos conseguido retribuir o tributo de vestir assim a nossa camisola, com uma vitória. A eles e a nós.

Perdi com os Estados Unidos que, confesso, menosprezara, a minha estreia num Mundial. Juro que aprendi. Espero, desejo!... que todos  tenhamos aprendido.

 

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