Ainda estamos vacinados

Portugal e Espanha ainda parecem imunes a tentações populistas e nacionalistas de extrema-direita. Mas os resultados das últimas eleições alemãs mostram que, em qualquer país, com o tempo, essa “imunidade” tende a esbater-se.

Num artigo no Diário de Notícias, este sábado, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel e vice-presidente do Centro Internacional de Toledo para a Paz, Shlomo Ben-Ami, enaltecia a “resiliência da democracia espanhola” – e juntava-lhe Portugal –, por estar ainda “aparentemente imune” ao nacionalismo xenófobo de extrema-direita, que tem alastrado na Europa e teve a mais recente expressão com a eleição do partido Alternativa para a Alemanha (AfD) para o parlamento nacional germânico.

Apesar da imigração, das dificuldades económicas e do desemprego elevado, em anos recentes, nenhuma das principais forças políticas que emergiram em Espanha, Ciudadanos e Podemos, evidencia a mínima tendência autoritária de direita, sendo ambas marcadamente antirracistas e pró-imigrantes. Nem o PP espanhol sofreu a mesma pressão de outros partidos conservadores europeus, que endureceram a postura sobre a imigração para reocuparem o espaço perdido para os populistas.

Os partidos nacionalistas e xenófobos têm crescido, na Europa, alimentados por um sentimento crescente de insegurança em relação aos estrangeiros, vistos como uma ameaça aos empregos, concorrentes nos apoios sociais ou potenciais terroristas. Na Alemanha, o voto na AfD está muito ligado ao desconforto de parte importante da população com a entrada, no país, de um milhão e duzentos mil refugiados nos últimos dois anos. O partido fez, de resto, uma campanha assente nesse tema.

Mas o medo do estrangeiro – que em Portugal e Espanha é genericamente inexistente – não foi a única razão do sucesso da extrema-direita alemã nestas eleições. Outra, tão ou mais

importante, foi a desigualdade social que se cavou na sociedade germânica, e com essa podemos encontrar pontos de contacto na realidade portuguesa. Uma análise aos resultados da AfD – e do NPD, o partido neonazi – mostra uma concentração de votos na extrema-direita na antiga Alemanha de Leste, onde as condições de vida continuam a ser piores do que na parte ocidental, após quase trinta anos de reunificação do país. Aprofundando a análise, detectamos bolsas da AfD também nas regiões ocidentais, entre as populações rurais que vivem pior do que nos centros urbanos, em áreas da Renânia-Palatinado, por exemplo.

Um estudo sobre as desigualdades na Alemanha, divulgado esta semana, evidenciou a existência de um fosso profundo entre as populações das cidades e as das áreas rurais, cada vez mais envelhecidas e despovoadas. Também esta semana, no dia da unidade alemã, o presidente Frank-Walter Steinmeier lamentou “os novos muros” que se ergueram no país: entre o Leste e o Ocidente; entre quem vive no campo e na cidade; entre quem tem trabalho e quem não tem, ou tem apenas um “mini-job” mal pago; entre quem tem acesso fácil a cuidados de saúde e quem não tem; entre quem tem escolas decentes e quem não tem; entre quem tem internet e quem não tem.

Talvez uma das razões da “imunidade” de que fala Shlomo Ben-Ami seja o facto de Espanha e Portugal terem saído há relativamente pouco tempo de ditaduras de direita muito prolongadas. Não se completaram ainda duas gerações depois do 25 de Abril, em Portugal, e do fim do franquismo, em Espanha, tempo talvez insuficiente para a diluição da memória dessas experiências. Na Alemanha, já na terceira geração a seguir ao nazismo, só agora houve o “atrevimento” de eleger para o parlamento nacional um partido de extrema-direita.

Andreas Kluth, antigo correspondente da revista Economist, agora editor-chefe do jornal Handelsblatt, dizia-me, em Berlim, que talvez esteja a acabar, na Alemanha, a validade da vacina do nazismo, e que este voto na AfD representa sobretudo uma “normalização” da política alemã, agora mais alinhada com o que se passa nos países vizinhos, todos com uma presença forte da extrema-direita. A lição, que os políticos alemães vão dando sinais de terem percebido, com estas eleições, é que nenhum país está livre da extrema-direita, se deixar agravar as condições – nomeadamente as desigualdades sociais – em cima das quais ela se reforça. Nem mesmo a Alemanha, que parecia, por razões históricas tristemente célebres para os alemães, o país europeu mais desconfiado em relação a potenciais excessos de direita.

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