Salazar também tinha um pais

Chamava-se Fernando Silva Pais e era o chefe da PIDE, o cão de guarda do Estado Novo. Era um dos pilares do regime. Outro era António Ferro, o homem da propaganda, mentor do “Jornal Português”, a lendária “revista de atualidades” que a Cinemateca editou em DVD e que os aprendizes de feiticeiro que por aí andam a fazer a comunicação dos partidos e do Governo deviam ver, para nos pouparem à sua torrente de disparates.

A propaganda política anda muito em baixo. Em pouco tempo vimos cartazes do PS que pareciam obra de “kamikazes” ou de infiltrados das campanhas adversárias, empenhados em impedir que os socialistas regressassem ao poder. Depois uns vídeos – felizmente curtos – em que António Costa aparecia a explicar o Orçamento e que vinham com o aspeto de terem sido produzidos por estagiários inexperientes pagos a “recibo verde”. E há dias rimos para não chorar com o obtuso cartaz do Bloco de Esquerda sobre a paternidade de Cristo, que Catarina Martins, ao fim de muita conversa, lá veio considerar “um erro”.

Tudo isto era escusado. Bastava que as mentes por detrás desses vídeos e cartazes tivessem perdido algum tempo a verem os 95 episódios do “Jornal Português”, disponíveis no ANIM e editados em DVD pela Cinemateca. Missão nada fácil, dado estarmos em presença de uma coleção com mais de 16 horas distribuídas por 5 DVD’s, mas certamente muito útil para aprender como se faz propaganda a sério e quiçá melhorar a labuta diária do nosso “marketing político”.

O “Jornal Português” foi produzido pela Sociedade Portuguesa de Atualidades Cinematográficas para o Secretariado de Propaganda Nacional, dirigido por António Ferro, e durou treze anos, entre 1938 e 1951. Era exibido nas salas de cinema, naquele período antes do filme que é agora ocupado pelos anúncios e pelos “teasers” das próximas estreias. Ferro percebeu, antes de Salazar, que esses filmes podiam ser instrumentos poderosos de “educação” do povo, e não facilitou no “Jornal Português”.

Começou por entregá-lo a quem sabia da poda. António Lopes Ribeiro escrevia as edições, realizava-as e ainda assegurava a locução, o que fazia

de forma servil, beata e bajulatória, mas com indiscutível mão de mestre. Como se calcula, o “Jornal Português” não primava pela diversidade de conteúdos, nem muito menos pela distância crítica em relação ao regime. Salazar e Carmona eram omnipresentes nestes filmes que repetiam “ad nauseam” as inaugurações, as cerimónias religiosas, as paradas e marchas militares, as exibições de ginástica, tudo o que servisse à encenação fascista do regime e à projeção de um Portugal de fachada, um país de “ordem” e “disciplina”, de “progresso” e “modernidade”. Celebrava-se “o saneamento indiscutível da vida portuguesa” e o “oásis de paz num mundo em guerra”. Em suma, um foguetório. Mas em bom português, coisa que hoje não abunda, e esteticamente irrepreensível. Era cinema puro. E persuasivo.

A edição destes 95 números do “Jornal Português” foi a escolha da Cinemateca para iniciar o seu programa de publicações próprias em DVD, para divulgação do acervo do ANIM. Parece que Salazar não era muito dado às modernices do cinema e acharia até muito mal empregue o dinheiro gasto com o “Jornal Português”. Talvez achasse que não merecia tanta consideração, como disse que não merecia a manifestação de agradecimento que os portugueses lhe dedicaram pelo “milagre” de ter mantido o país afastado da guerra. Mas a Cinemateca merece com certeza o reconhecimento geral pela ideia de pôr o “Jornal Português” ao alcance de todos. A instituição liderada por José Manuel Costa merece mesmo mais: a atenção e o respeito do novo Ministério da Cultura de João Soares.

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