Guerra Fria

Enquanto nos EUA as massas se entretêm com o circo em que se transformou a eleição para o próximo presidente, avaliando e indignando-se com as performances macho alfa Trump face ao universo feminino, um outro macho alfa vai criando as condições para tornar muito mais difícil a vida do próximo presidente norte-americano.

O parlamento russo ratificou nesta última semana o uso por tempo indefinido, e sem contrapartidas, da base aérea de Hmeimim, na Síria. Por outras palavras, Putin dá garantias a Bashar Assad que não o irá deixar cair (ou, talvez melhor: não o deixará cair enquanto precisar dele), e reafirma, se dúvidas houvesse, que a Síria é estratégica para a Russia. Além disso, tornou claro que também pretende alargar esse estatuto à base naval de Tartus, e pouco restará ao presidente sírio senão aceitar a decisão do seu principal protector. Isto significa que nos despojos desta guerra, a Rússia já ganhou uma posição inquestionável.


Outros procuram ainda qual o melhor peão para terem algo a dizer, algo a obter dos escombros em que se tornou a Síria. A Turquia, por exemplo, resolveu intervir de forma mais máscula no que considera o seu "quintal", apoiando os supostos moderados, forma de impedir a criação de uma entidade curda autónoma, o que, para Ankara, seria intolerável. Nessa missão estão em articulação com os norte-americanos e as monarquias do golfo. Mas cada um tem, apesar dos outros, uma agenda específica. Repare-se que o Qatar apoia os extremistas inspirados na AlQaeda, a Turquia faz-lhes vista grossa, os EUA consideram-os gente não frequentável.

Nesse caos, para a região e o mundo, a Rússia está um passo à frente. Com o pretexto de combater o dito "Estado Islâmico", e embora também o faça, instalou no terreno baterias de mísseis terra-ar, S-300 e S-400, o que torna muito arriscado iniciativas de outros "interessados" em frequentar os céus sírios, sob pena de se envolverem directamente com Moscovo (o que faz com que a frase de Bashar Assad evocando a terceira guerra mundial, numa recente estrevista a um órgão de comunicação social russo, se torne muito mais clara). 

Mas a Síria é apenas o aspecto mais emblemático de uma política russa mais agressiva, o que irá obrigar um acerto de contas muito mais complexo a partir de Janeiro do próximo ano quando tomar posse o novo presidente dos EUA. Putin estica a corda em muitas outras áreas: mísseis com capacidade nuclear no enclave de Kalinenegrado (a antiga Konisberg, cidade natal de um dos mais importantes filósofos europeus, Emanuel Kant), tornando mais tensa a situação nos estados bálticos - é bom lembrar que por lá vivem importantes comunidades russofonas; admite reabrir bases em Cuba e no Vietname; mandou às urtigas um acordo com os norte-americanos para impedir o reprocessamento de plutónio em novas armas; participa em exercicios militares de grande envergadura com a República Popular da China; não dá sinais de cedência na questão da Ucrânia, muito menos na anexação da Crimeia. 

E mais ainda há, da guerra cibernética aos apoios mais ou menos declarados aos movimentos populistas europeus.

Putin promete fazer a vida do próximo presidente dos EUA uma tensão enorme. O antigo espião já deu mostra que é arguto, frio, capaz de arriscar para lá do bom-senso. A guerra fria já não é passado. Regressou em força.

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