Um Islão "made in"

No Ocidente há quem olhe para o Islão como uma entidade monolítica. É um erro crasso. Desde logo pela rutura entre sunitas e xiitas, os dois principais ramos da religião. E associar o Islão às práticas rígidas, ortodoxas e brutais que são propaladas pelo “Estado Islâmico” leva-nos a diabolizar toda a religião, descurando a multiplicidade de aproximações entre os crentes e a revelação feita por Maomé.

A questão essencial reside hoje sobretudo nas teias que se entrelaçaram ao longo das últimas décadas entre a casa de Saud (guardiã dos lugares santos de Meca e Medina) e o mundo em geral - o Ocidente de uma forma muito particular. Isto porque na Arábia Saudita impera um ramo do Islão sunita herdeiro de uma escola (fundada no século IX por ibn Hanbal e reformulada no século XVIII por al-Wahhab) onde se defende uma interpretação literal do Corão. Nos fundamentos e na prática é pouco diferente daquela que é defendida pelos partidários do “Estado Islâmico”. E é ao Ocidente que a Arábia Saudita vem buscar os recursos financeiros que lhe sustentam o reino, o protegem e são também a base essencial para difundir por todo o lado esse mesmo Islão que renega em absoluto o modo de vida de liberdade e tolerância, pedras angulares deste mesmo Ocidente.

Em França não é de hoje que se procura definir um Islão francês, algo que permita estabelecer o equilíbrio da religião com uma república formata na tradição jacobina e cimentada nos valores do iluminismo. A tarefa é demasiado complexa e plena de vetores, alguns muito contraditórios. Veja-se, por exemplo, o caso da miríade de imãs, cada qual com uma ligação a uma comunidade específica, tunisina, marroquina, argelina e outras, o que faz com que cada um tenha uma certa agenda específica, mas muitos deles, senão a maioria, com contactos mais diretos ou menos diretos com o ramo saudita e a corrente ultrarrigorosa wahabita. E esta questão é sempre inultrapassável por causa das intensas relações a vários níveis entre a França e a Arábia Saudita. Militares, inclusivé. 
  
Enquanto esta corrente dominar os lugares santos do Islão, enquanto a Arábia Saudita puder contar com as trocas comerciais e os recursos financeiros que lhe chegam do Ocidente, dificilmente haverá hipótese de afirmação de um outro Islão sunita. Porque é ela quem mais tem financiado a difusão da religião por todo o mundo, da Alemanha à Indonésia, sempre com o cunho da tradição wahabi.

Recentemente, o ditador tchetcheno, Ramzan Kadyrov, um homem de Putin no Cáucaso, convidou inúmeros dignitários de todo o mundo sunita para uma reflexão onde fosse possível definir o que é o principal ramo do Islão e lutar contra o extremismo. O encontro reuniu inúmeras personalidades, entre elas o xeique da universidade egípcia de al-Azhar, a mais emblemática e prestigiada instituição representativa do Islão sunita. As conclusões reduziram os salafitas e o ramo wahabi a uma simples escola jurídica e enfatizaram o Islão ashfarita, mais metafórico e racional. 


Reagiram mal os sauditas, até porque nem sequer foram convidados. Mas algo se passou e algo se está a passar dentro do Islão sunita. Putin já percebeu. No Ocidente ainda não. 

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