Conte-me mais sobre o seu paizinho

O Forte de Peniche pode passar a ser uma turística pousada para comidas e dormidas, num dos lugares mais importantes da luta pela Democracia em Portugal. Imagine-se que os terrenos Auschwitz, os cerca de 40 quilómetros quadrados, de valor turístico elevadíssimo, devido ao milhão e meio de visitantes por ano, se transformassem numa imensa estância de spa.

A notícia chegou há uns tempos e com muita indignação associada. O Estado prepara-se para dar a privados a concessão de espaços públicos, entre estes, o Forte de Peniche, o sítio que chegou a ser chamado de “Depósito de presos”. Confesso que não pensei muito mais sobre o assunto. Ficou um desconforto. Entre a possibilidade de haver uma reabilitação por uma empresa privada e a manutenção desse legado público, a reflexão ficou por aí. Até à noite em que conheci o senhor António (nome fictício), condutor de taxi em Lisboa, em noite já tardia e divertida, para um percurso de pouco mais de 10 minutos e uma história de vida para contar.

Já tinha reparado, por viagens anteriores que os motoristas de taxi em Lisboa andavam mais silenciosos, talvez desiludidos ou apenas cansados. Menos conversas, rádio de sons moderados, velocidades tranquilas. Fosse minha impressão, a verdade é que não houve histórias nem anedotas, nem reclamações sobre as finanças ou buzinadelas ao automóvel do lado. Nessa noite de chuva e certo sábado, o senhor António nem queria falar. Mas apareceu à conversa o seu pai, que tinha morrido quando era pequenino e que os irmãos eram mais velhos e o comunismo é que o matou.

Melhor se explicou quando então falou de um pai por várias vezes detido pelos guardas e que a tuberculose agarrou, porque o médico foi proibido pela autoridade de o tratar.

- Morreu tuberculoso, tinha eu nove anos.

Pedi para contar mais. Era mais do que curiosidade. Sempre quis entender quem se atira para a morte pela liberdade, quem não se deixa agarrar pelo medo, nem por vidas confortáveis de silêncios. Que o pai era comunista, todos lá em casa sabiam e era uma aventura para o sr António vestir os calções, mais arranjinhos e lavadinhos, que já tinham sido dos irmãos, para ir de visita ao Forte de Peniche aos senhores que lá estavam presos, mesmo que não os conhecesse de lado nenhum, mas que lhe davam muitos beijos, a ele e à mãezinha dele, só para levarem uns sorrisinhos e uns bilhetinhos do partido.

- Levava os bolsos cheios de recados! Até ficava mais gordo.

O senhor António lembrou assim o pai, que morreu tuberculoso porque era comunista na semana do seu 72º aniversário. Ia comemorar porque, depois dos 50, é que era, dizia. Para comemorarmos verdadeiramente o aniversário do senhor António, deveríamos lembrar os homens e as mulheres que estiveram no Forte de Peniche, durante essa ditadura fascista, responsável por um atraso brutal de sociedade, cultura e identidade. E recordar também todos esses bravos humanos que morreram, para hoje podermos ter escola, saúde pública, dias de férias e as palavras Liberdade e Igualdade, inscritas na Constituição da República Portuguesa.

O Forte de Peniche pode ser mais do que uma pousada para turista. Muito mais. Tem o potencial e o direito histórico para ser um Museu Nacional. E lembrar os nomes de quem foi torturado, porque foi torturado, quantos foram os clandestinos, todos aqueles que fugiram da PIDE, os que levaram os tiros e os que foram obrigados a abandonar as famílias, os que foram a salto para o estrangeiro e os que faziam programas de rádio desde a Argélia, para se falar em democracia e em português. Pode sim, existir em projeto museológico, estético, ético acima de tudo, para contar a história destes anónimos e desconhecidos, para finalmente erguer essa homenagem merecida e já há demasiado tempo esquecida.

O Forte de Peniche é um símbolo. Edifício que se ergueu um dia para nos defender como nação, utilizado depois para silenciar um ou outro irmão. Por respeito e memória, e tal como em Auschwitz, o Forte tem de permanecer espaço público, lugar nosso, para lembrar, todos os dias da nossa vida, que a Democracia é uma conquista. De dor, sangue e morte.

MUSEU MUNICIPAL DE PENICHE
REDE MUSEOLÓGICA DO CONCELHO DE PENICHE
Campo da República

HORÁRIO
3ª a 6ª Feira: das 09h00 às 12h30 e das 14h00 às 17h30
Sábado e Domingo: das 10h00 às 12h30 e das 14h00 às 17h30
2ª Feira: encerrado para visitas

Entradas até 30 minutos antes da hora do encerramento | Preço € 1,60


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