É porque morrer cedo é também um privilégio

Esta semana inaugura a exposição de Amadeo de Souza-Cardoso. Cem anos depois, o Porto recebe a obra de um dos mais brilhantes artistas jovens portugueses, que morreu aos 30 anos. Tinha obra feita e outra por fazer. Depois de passar pelo Grand Palais, em Paris em março deste ano, devolve-se à memória do seu país.

O Museu Nacional Soares dos Reis recebe uma história. A memória de uma exposição que em 1916 foi recebida com desconfiança e arrogância: Amadeo teve tamanha rejeição, que chegou a violências das físicas e tantas outras verbais. A exposição tinha vontades de futuro e isso é coisa que nem sempre se suporta. Nem hoje. Na altura, entregou às pessoas, 114 obras. Agora, são quase todas e certamente que serão recebidas com o mesmo espanto de outrora. Sendo que, 100 anos depois é com esse sentimento de deslumbramento, o mesmo que nos impressiona nesse labirinto de Fauno ou túneis de Alice.

Amadeo pensou e desenhou a exposição sozinho. Quis mostrar ao mundo o que lhe habitava e juntou mais de 30 mil pessoas lá nesse lugar da exposição. Muitas das obras são ainda intactas e têm a mesma vontade há 100 anos: dar a ver. É sentimento que se repetiu também na retrospetiva que a Fundação Calouste Gulbenkian organizou em 2007. Juntaram-se mais de 100 mil visitantes, em dias de filas e gentes que queriam conhecer o seu trabalho e os seus galgos e os seus cavalos e os seus retratos de São Julião. Agora, volta com data redonda mais as pessoas que o consagram e textos teóricos e estéticas precisas, para dizer outra vez que o Amadeo que morreu, tem tanto para nos contar. Amadeo teve liberdade de fazer e construir e depois de não querer, como se a morte fosse escolha, para aqueles que este mundo não recebe. A desistência é tão natural como respirar devagar.

Lembrando a morte e o génio de João Lobo Antunes, há essa palavra que fica entre as esperanças que tanto ofereceu: pessimismo. Pensando nos que morreram antes de tempo, até parece uma sorte, não chegar à idade de ter essa definição que se carrega com os anos de vida que se acumulam. Pessimismo é sentimento de quem, como Lobo Antunes conheceu, depois de tantas vezes salvar e recuperar, dar e entender, para chegar à conclusão que tudo vai dar a esse mesmo lugar: a morte. Amadeo deve ter morrido antes de saber como o mundo é. Mesmo antes de ter desistido das pessoas e das alegrias, dos pássaros e das bondades que pairam nas juventude. Nem sequer deve ter adivinhando a escuridão e o esquecimento dos anos a que o sujeitamos.

Quando era pequenina, o dia 1 de novembro era o dia dos mortos e dos choros da avó. Entre as cerimónias e os respeitos do luto sublinhados, havia também o “pão por deus” que acordava a aldeia inteira, antes da missa e dos solenes atos da refeição com galo assado. Era o dia da grande caminhada, mas primos e primas tinham sacolas de pano e sorrisos bem feitos para receber as nozes e as maçãs, os tostões e os copos de água da sede para continuar. Lá ao fundo, quase à hora do almoço, chegava-se à casa da antiga professora primária, senhora tão bonita que falava baixinho e tinha olhos esbranquiçados. Muitos dos primos e das primas desistiam dessa última casa. A mim, só me vinha à cabeça essa esperança de receber a primeira romã do ano. E como muitos iam embora, ficava com mais do que uma, para comer logo ali a primeira, junto ao poço e guardar as restantes para o Natal. E ainda havia as histórias da antiga professora primária. Histórias incríveis, lidas de livrinhos que também tinham Alices e Lagartos e Ursos. E a descrição de uma primavera que estava apenas adormecida, na romã doce que se comia ali, entre as histórias.

Quase 40 anos depois, também já sei o que é o pessimismo. Mas ainda penso na felicidade que encerra a romã, que todos os anos guardo para o Natal. Talvez que a visita ao Museu Nacional Soares dos Reis e à obra revisitada de Amadeo de Souza-Cardoso também nos lembre da primavera adormecida em que transformamos este mundo. É porque morrer cedo é também um privilégio, quando ainda não sabemos, o quanto fazemos parte deste mundo.


Exposição: AMADEO DE SOUZA-CARDOSO PORTO-LISBOA 2016-1916 PORTO LISBOA
Museu Nacional Soares dos Reis, de 1 de Novembro de 2016 a 1 de Janeiro de 2017
Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, de 12 de Janeiro a 26 de Fevereiro de 2017

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