Pessoas sem angústias existem?

Numa noite revirei o livro escrito por um amigo. Está neutro, sem edição. Sem capa ou dedicação. É uma resma de papel que trouxe para casa, sem páginas numeradas ou prazos para cumprir. O livro do meu amigo até já tem título. E tem coração.

Por força da profissão há livros que vou lendo por empreitada. E sim, é uma sorte ter este trabalho. Pegar no "Anunciações", o mais recente de Maria Teresa Horta ou na poesia de Eugénio de Andrade que se projeta outra vez em mim, em circunstância que quero para o resta da vida. São livros previstos, já trabalhados em correria para as primeiras montras das livrarias, em que o encontro com o cheiro a novo e os caracteres escolhidos faz imediata vontade de ler. É destino. Está já traçado.

Mas nem sempre encontro os finais de todos os livros. É como se os deixasse pendurados, numa mesa-de-cabeceira, filhos que mãe nenhuma abandona e esquece, para uma destas noites regressar e acarinhar.

E é essa angústia de tantos para ler, tantos autores para entender, rios e selvas de outras imaginações que me preserva a vontade de ler, cenário de títulos, lombadas e letras.

A minha mãe achava, quando era pequenina, que o mundo era também pequenino. E que o infinito estava só nos livros e nas histórias emprestadas que se juntavam só para a fazer descobrir. A minha mãe achava, quando era pequenina, que os sonhos estavam todos escritos. Mas apenas escritos, nunca vividos. E então a minha mãe, quando era pequenina, pegava nesses sonhos e imaginava que a vida só era boa dentro das folhas cheias de letras, e sem corpo e sem roupa e rodeada de luzes e brilhantes, de castelos, mares, algodão e marfim. Para depois acordar. Para a angustia de fechar. Um livro e mais outro. Porque acabam sempre por se acabar, sem rua fugida ou descampado prometido: "There's no way out".

A minha mãe, quando já estava crescida, lá tinha alguns livros que nem lia nem lembrava, porque a vida já nem lhe desculpava fugas para as histórias. E então pegava eu nos livros esquecidos e juntava as montanhas para me sentir acompanhada. Sempre com a ideia de que o mundo era mesmo grande e a linha do comboio estava tão perto para me levar.

Do que me dizem as pessoas sem angústias, é que nunca leram um livro. Nem tentaram chegar ao fim. Ou nem quiseram nem chegar ao fim, para não terminar assim.

Mas não existem pessoas sem angústias. As que não leram livros estão por lá fechadas ou libertadas, com existências de luzes e brilhantes, de castelos, mares, algodão e marfim.

Li o livro do meu amigo. E cheia de angústia. Porque queria chegar ao fim, sem querer matar personagens, pessoas de sua invenção. Morreram e depois comovi-me. Porque é um livro. Maravilhoso. Duro. Rebelde. E cheio de gritos de angústia.

Preferia deixar que os infinitos em que a minha mãe acreditava, quando era pequenina, permanecessem por ali, junto à mesma mesa apinhada de livros, teimosas existências que escolho por companhia. Com medo? Não, apenas perdida por uma ilusão de que o mundo é o que imaginamos dele. Aqui, nesta realidade angústias. Sempre nessa perspetiva: "there´s always a way out".

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