Novas atas expõem desordem europeia na luta contra a pandemia

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Johanna Geron - Reuters

Novas atas das reuniões do conselho técnico do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) demonstram a desordem na União Europeia no início da pandemia. As atas, às quais o jornal espanhol El País teve acesso, revelam a impotência de Estados-membros para lutar contra uma ameaça cuja gravidade desvalorizaram inicialmente.

Ainda no início da pandemia, a 18 de fevereiro, 30 membros do conselho técnico do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) reuniram-se na sede desse organismo para debater o novo coronavírus.

À data, a Covid-19 incidia essencialmente no continente asiático, o epicentro da pandemia. A Europa registava ainda apenas 45 casos, todos importados ou fruto de contágio entre contactos próximos.

Apesar dos aparentes sinais de que a pandemia se estava a aproximar, o ECDC desvalorizou a ameaça e considerou “baixo” o risco de infeção por Covid-19 na Europa. Apenas três dias foram necessários para que Itália descobrisse que o vírus se tinha espalhado no norte do país, com evidências de transmissão local. Este foi o ponto de partida da pandemia no continente europeu e não demorou muito até que o vírus chegasse aos restantes países.

Na quinta-feira, El País reportou novos problemas encontrados durante o desenvolvimento da pandemia na Europa. Novas atas das reuniões extraordinárias dos responsáveis pela saúde pública realizadas entre 24 de fevereiro e 21 de abril evidenciam dilemas que prejudicaram a resposta da UE à pandemia, como a incapacidade de realização de testes de diagnóstico a todos os casos suspeitos de Covid-19, a adoção de medidas unilaterais pelos Estados-membros e a dificuldade de unificar os critérios.
De risco baixo a moderado e definição de caso suspeito
Seis dias após a reunião de 18 de fevereiro, o ECDC reconhecia a presença de um “foco extra” em Itália, com a identificação de transmissão local. “Esse evento levou o ECDC a atualizar a avaliação do risco atual geral de baixo para moderado”, lê-se na ata.

Nesta reunião a 24 de fevereiro, os responsáveis europeus pela saúde observavam também que os primeiros casos de infeção atendidos em hospitais causaram contágios entre profissionais de saúde.

Os países já assumiam que não tinham capacidade para realizar todos os testes de diagnóstico necessário e o representante de um país alertou para a “falta de máscaras cirúrgicas” nos centros de saúde. Perante estas preocupações, o EDCC elevou o risco de ocorrência de surtos em qualquer país europeu de “moderado a alto”.

A discussão voltou-se depois para uma questão fundamental: a definição de caso suspeito, isto é, os critérios que os doentes suspeitos devem atender para que possam ser submetidos a testes de diagnóstico. Até então, os testes eram feitos apenas “a pacientes com infeção aguda no trato respiratório com histórico de viagem ou residência num país/área que reporta transmissão comunitária durante os 14 dias anteriores ao início dos sintomas”, ou seja, apenas a pessoas que tinham estado em Wuhan ou na sua província.

No entanto, os critérios da Organização Mundial de Saúde (OMS) eram diferentes e definiam áreas geográficas a nível do país, o que forçaria a considerar como caso suspeito qualquer pessoa com sintomas em Itália. “Isso é muito difícil de implementar devido à capacidade insuficiente de teste”, argumentou o principal cientista do ECDC, Mike Catchpole, na reunião.

A decisão neste ponto chegou no final da reunião, ficando acordado que incluídos na lista de áreas com transmissão comunitária ficariam “apenas os municípios/regiões confinadas, não as grandes cidades próximas ou países inteiros”. Para justificar esta decisão, os participantes da reunião tomavam China como exemplo, onde “não é incluída como um país inteiro, mas é avaliada a nível de província”.

O ECDC esclareceu que incluído em caso suspeito está “qualquer indivíduo com sintomas clínicos relevantes que tenha estado recentemente numa localidade com transmissão comunitária ou país com transmissão generalizada”, mas deixou a decisão final aos países, caso preferissem “incluir apenas casos graves”.

No entanto, Catchpole já previa que seria inevitável uma propagação do vírus na maioria dos países e, portanto, considerava que “classificar a transmissão comunitária a nível nacional provavelmente será relevante apenas por mais algumas semanas”.
Risco alto e definição “obsoleta” de casos suspeitos
A segunda reunião realizou-se já em março, no dia 4, e o aumento dos casos no continente europeu era proporcional à crescente dificuldade na luta contra a pandemia.

A diretora do ECDC, Andrea Ammon, começou a reunião por observar que foi registado um aumento do número de casos de Covid-19 sem ligação às áreas afetadas e um número crescente de casos em diferentes países da UE, sublinhando que “isso pode ser uma indicação de que o vírus está na comunidade”. Na altura, os casos em Itália já ultrapassavam os três mil e os mortos atingiam a marca de uma centena. Em Espanha, eram diagnosticados 200 casos e registadas as primeiras mortes.

Ammon alerta na reunião que a situação está em “rápida evolução”, o que forçou uma nova avaliação da classificação de riso de moderado para alto.

Para além disso, a diretora do ECDC reportava que “colegas em Itália relataram que os hospitais no norte da Itália estavam no limite e situações semelhantes poderiam ocorrer noutros Estados-membros”.

A avaliação de risco do ECDC, publicada apenas dois dias antes da reunião, “já incluiu diferentes cenários com as medidas necessárias a serem tomadas, assim como orientações”, sublinhou Ammon. À data, Espanha ainda não tinha adotado nenhuma medida.

Na reunião voltou a ser destacada a incapacidade de testar “todos os pacientes com sintomas respiratórios” nas áreas de risco declaradas pela OMS e insistem na definição de “áreas menores” de transmissão comunitária, o que permitiria “testes mais focados e viáveis”.

Surgiram novamente discussões em torno da definição de casos suspeitos, com alguns responsáveis a salientarem que “a definição da OMS provavelmente se tornará obsoleta muito em breve, tendo em conta a velocidade de propagação da pandemia”.

“Esse é um problema que a OMS reconhece e a intenção é atualizar a abordagem nas próximas 24/48h”, lê-se na ata.

Os responsáveis europeus reconhecem que os países estão sob pressão, “mas não anseiam um abandono dos esforços de contenção no momento”. Mike Catchpole sublinha na reunião “que é possível observar áreas onde transmissão está a aumentar”, mas lamenta que “o ECDC não recebe um nível satisfatório de informações” por parte dos Estados-membros.
Escassez de material
A terceira reunião no ECDC é realizada a 17 de março e o prognóstico era sombrio: falta de testes, escassez de material de proteção para os profissionais de saúde, hospitais no limite e um aumento generalizado do número de casos e de óbitos. Itália já estava perto da barreira dos três mil mortos, Espanha dos 600 e França dos 300.

Espanha declarou entretanto estado de emergência e a tomada de decisões unilaterais como o fecho das fronteiras fraturaram a unidade de ação da UE.

A diretora do ECDC reconheceu “a competência limitada” da UE no campo da saúde, apesar de os países exigirem “ informações claras sobre quais as medidas a implementar”.

Andrea Ammon sublinhou a importância de serem tomadas medidas, sublinhando que “sem mitigação, os sistemas de saúde, e especialmente as Unidades de Cuidados Intensivos, seriam sobrecarregados, como aconteceu na Itália e na China".

As descobertas recentes de pacientes assintomáticos, o risco elevado de infeção entre grupos vulneráveis e a previsão de que alguns países europeus teriam um cenário pandémico semelhante ao de Wuhan até “ao final de março ou mais cedo”, levou o ECDC a aumentar o risco de infeção para a população em geral.

De acordo com a ata, um dos principais problemas continua a ser " a escassez de equipamentos de laboratório em vários países ", o que os impede de "fazer os testes recomendados", obrigando a que sejam “restritos e priorizados”. Para além disso, na reunião foi ainda discutida a falta de equipamentos de proteção para os profissionais.

Nesta reunião, Ammon já levantava uma questão que seria crucial no futuro: o processo de levantamento das restrições. "Os cidadãos parecem ter aceite amplamente as medidas drásticas aplicadas, mas a questão é por quanto tempo eles farão isso", questionava a diretora do ECDC.
Aplicações de monitorização e infeção nas crianças
Na altura da quarta reunião do conselho técnico do ECDC, a Europa já superava as 50 mil mortes por Covid-19. À data da reunião, a 6 de abril, a maioria dos países estava já sob medidas de restrição e alguns até já tinham atingido o pico.

O ECDC publicava a sua mais recente avaliação de risco que “embora não abranja nenhuma das estratégias de desconfinamento, compila alguns pré-requisitos que seriam necessários quando as estratégias de saída forem consideradas”, referia Ammon.

Os responsáveis europeus começavam a explorar a possibilidade de serem adotadas estratégias comuns, como “o uso de aplicações para telemóveis para monitorizar automaticamente os contactos”. Esta era uma questão que consideravam relevante, mas adiaram as discussões.

Na reunião foram ainda levantadas questões relacionadas com “o papel das crianças na transmissão da doença”, para as quais o ECDC, embora reconhecesse ser “uma questão importante”, dizia não ter ainda uma resposta clara e que estava ainda em estudo.
A reabertura de escolas
A quinta e última reunião do ECDC aconteceu a 21 de abril. O número de vítimas mortais na Europa ascendia os 100 mil , mas a diretora da organização dava a positiva notícia de que “20 países registaram uma queda no número de casos de infeção nos últimos seis a 11 dias”.

Ammon também mencionou o roteiro de saída da epidemia acordado em 15 de abril pela Comissão e pelo Conselho Europeu, um plano que considera ser "bastante geral e requer linhas específicas mais precisas". A diretora do ECDC referia-se especificamente à reabertura das escolas, que gerava muitas dúvidas.

Dado que a infeção nas crianças parecia ser de menor gravidade e a maioria era assintomática, os responsáveis dos Estados-membros questionavam como seriam monitorizadas. Mike Catchpole respondia que "como uma certa percentagem de crianças, mesmo que pequenas, desenvolve sintomas, as mudanças que apresentam podem ser um indicador" na fase de desconfinamento.

O ECDC insistia na necessidade de se estabelecer indicadores que "permitam aos países detetar imediatamente um aumento de casos e adotar as medidas necessárias ou continuar com o processo de desconfinamento, dependendo da situação".

Os lares e residências de idosos, que eram casos de grande preocupação na maioria dos países, contituiam um dos pontos mais relevantes de discussão na reunião.

O novo coronavírus já infetou mais de 1,8 europeus e causou mais de 176 mil mortes no continente. A nível global, há a registar mais de 5,8 milhões de casos de infeção e mais de 360 mil óbitos.
Tópicos
pub