Responsáveis pela saúde pública europeia desvalorizaram gravidade do vírus

por RTP
Foto: Vincent Kessler - Reuters

A 18 de fevereiro, 30 membros do conselho técnico do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) reuniram-se na sede desse organismo da UE para um encontro de dois dias durante o qual debateram a pandemia do novo coronavírus. As atas da reunião, às quais o jornal espanhol El País teve acesso, revelam que a preocupação dos responsáveis não foi tão elevada quanto deveria ter sido.

Nessa data, a Covid-19 incidia fortemente sobre o continente asiático, sendo que no europeu existiam apenas 45 casos, todos importados ou fruto de contágio entre contactos próximos. Três dias depois, Itália viria a descobrir que o vírus se tinha espalhando silenciosamente pelo norte do país. Não demorou muito até que chegasse a todos os restantes países do continente.

Apesar dos aparentes sinais de que esse cenário estava a aproximar-se, os 30 “guardiões da saúde pública europeia”, assim apelidados pelo El Pais, discutiram o problema como se este estivesse sob controlo. O diário espanhol teve acesso às atas da reunião e revelou que o ECDC considerou “baixo” o risco da Covid-19 para a população europeia.

Na altura, o vírus que teve início na China tinha já morto duas mil pessoas e infetado mais de 75 mil em todo o mundo, pelo que os responsáveis presentes na sede do ECDC determinaram a necessidade de perceber se o SARS-CoV-2 já estava muito espalhado pela Europa e de desenhar medidas para o enfrentar. Muitas das propostas foram, porém, adiadas para dali a duas ou três semanas.

De acordo com as atas da reunião, Áustria e Eslováquia apontaram para o inconveniente de gerar medo entre as populações, enquanto Espanha alertou para o risco de “estigmatizar” aqueles que fossem submetidos a testes de diagnóstico para a Covid-19.

A Alemanha, por outro lado, tentou que fossem desde logo criadas recomendações de distanciamento social por acreditar que “as doenças não respeitam fronteiras”, mas aparentemente a sugestão não teve sucesso.
“Subestimou-se o vírus”
A maioria do tempo da reunião foi dedicado a discussões técnicas e preparatórias, nomeadamente sobre a definição de critérios a cumprir pelos pacientes sujeitos a testes.

Foram também debatidos os 45 casos que na altura tinham sido identificados na Europa, entre os quais o de um turista chinês que tinha falecido devido em Paris. O Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças frisou então que os contágios locais pareciam ser “leves”, além de serem muito poucos e todos eles estarem sob vigilância pelas autoridades de saúde.

Por essa razão, o organismo classificou de “baixo” o risco para a população e “de baixo a moderado” o risco para os sistemas de saúde.

Mike Catchpole, cientista chefe do ECDC, alertou, no entanto, para o facto de “o vírus se transmitir muito bem”, com base naquilo que tinha sido até então observado nos casos europeus, nomeadamente numa empresa na Alemanha e numa estação de esqui nos Alpes franceses. A principal função do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças é criar propostas de coordenação para que os países da UE protejam de forma mais eficiente a saúde das suas populações.

Na altura, as autoridades de saúde tiveram dificuldades em detetar o vírus uma vez que a definição de “caso suspeito” apenas se enquadrava a quem tivesse viajado até Wuhan, onde o surto teve início, e mostrasse algum sintoma. Só nesses casos poderiam ser realizados testes à Covid-19.

“É importante saber onde e quando procurar o vírus”, alertou o representante dinamarquês na reunião de 18 de fevereiro. “Por exemplo, num caso de pneumonia grave, seria lógico testar o paciente em busca do vírus”, mesmo que este não tivesse estado em Wuhan, defendeu.

O responsável finlandês, por outro lado, considerou “insustentável” testar mais pessoas, nomeadamente viajantes vindos de outros países onde também já existiam casos confirmados da doença, entre os quais Japão, Vietname ou Singapura. “Isso levaria muitas pessoas a exigir o teste, a maioria das quais teria resultado negativo, e a sobrecarga do sistema de saúde seria enorme”, afirmou, de acordo com as atas da reunião.

Apenas a 25 de fevereiro, quatro dias depois das primeiras mortes por Covid-19 em Itália, é que os critérios para a realização de testes foram relaxados.

“Subestimou-se o vírus”, considerou ao El Pais Daniel López Acuña, ex-membro da Organização Mundial da Saúde e professor de saúde pública. “Com o que já era conhecido na altura, é visível que não se valorizou suficientemente a capacidade de transmissão do vírus nem o impacto que podiam ter as viagens internacionais”.

Desde que foi detetado pela primeira vez, em dezembro, o novo coronavírus já infetou 4,8 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais 1,7 milhões conseguiram recuperar. Mais de 317 mil pessoas não resistiram à Covid-19.
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