Alarme climático. Oceano Glaciar Ártico ainda sem gelo

por Graça Andrade Ramos - RTP
A vista através da Baía de Yoldiabukta até à ilha de Spitsbergen, parte do arquipélago de Svalbard no norte da Noruega Reuters

Faltam poucos dias para acabar outubro e, na Sibéria, o Mar de Laptev mantém-se em estado líquido. Habitualmente, a navegação por esta altura já seria ali impossível, devido às camadas de gelo. Só que, em 2020, o clima de agosto e setembro prolongou-se. São más notícias para os investigadores que acompanham o clima do Ártico.

Em vez da variação em crescendo esperada para esta altura do ano, os mapas que registam o desenvolvimento do gelo no Mar de Laptev mostram uma linha contínua.

Nunca, desde que há registos, se verificou um congelamento tão tardio no Mar de Laptev, considerado uma das maternidades  do gelo do Ártico. Cientistas do clima atribuem o atraso a uma recente onda de calor anormal no norte da Rússia e à intrusão de águas do Atlântico.

“A falta de congelamento até esta altura não tem precedentes na zona do Ártico siberiano”, refere Zachary Labe, investigador em pós-doutoramento na Universidade estatal do Colorado, Estados Unidos. Os efeitos na fauna e na flora da região polar irão ser sentidos em catadupa e provavelmente o clima de todo o planeta irá sofrer dentro de poucos anos o impacto do aquecimento do Ártico.

“O ano de 2020 é mais um consistente com um Ártico em mudança acelerada”, referiu ainda Labe, em entrevista digital ao britânico The Guardian.

A temperatura das águas na área está cinco graus acima do habitual para esta época, em linha com o inverno passado.

Todo o calor captado na atmosfera leva tempo a dissipar-se, mesmo nesta altura do ano em que o sol só surge uma a duas horas por dia acima do horizonte. Mas este não é o único fator com impacto na formação do gelo.
Gelo cada vez mais fino
Correntes mais quentes oriundas do Oceano Atlântico têm penetrado no Oceano Glaciar Ártico e quebrado a estratificação habitual entre águas quentes mais profundas e a superfície mais fria, o que também dificulta o congelamento.

O fenómeno tem sido constante. “Os últimos 14 anos, de 2007 a 2020, caracterizaram-se pelas mais baixas extensões de gelo desde o início dos registos por satélite, em 1979”, afirma Walt Meier, um dos principais cientistas do Centro Nacional de Dados de Gelo dos Estados Unidos da América.

Muito do gelo perene do Ártico está a desaparecer, deixando apenas gelo sazonal fino. De forma geral, a profundidade do manto de gelo no Ártico é metade da que era nos anos 80 do século passado.

Em dezembro de 2018, um vídeo concebido também por Meier, então ao serviço do Centro de Voos Espaciais Goddard da NASA, demonstrou o fenómeno ao longo dos últimos 32 anos.

Uma menor extensão de gelo significa que uma menor quantidade de calor é refletida para o espaço, num ciclo vicioso que acelera o aquecimento de toda a região.
As temperaturas elevadas já estão a levar o pergelissolo, ou permafrost, a derreter. Vários cientistas temem que grandes quantidades de metano, ali aprisionadas, se libertem, agravando o aquecimento da atmosfera do planeta. 
Em finais de setembro, uma expedição da Greenpeace, a bordo do navio Arctic Sunrise, viu-se aflita para encontrar grandes formações de gelo à superfície da água, bem acima do ciclo polar ártico.

Dia 20 desse mês, o fenómeno foi igualmente denunciado pela ambientalista e ativista britânica de 18 anos, Mya-Rose Craig, que se colocou no meio do Oceano Glaciar Ártico com um cartaz a apelar à "greve da juventude pelo clima".
Verão sem gelo
Também já o descongelamento do último inverno havia sido antecipado e, entre janeiro e junho de 2020, as temperaturas no extremo norte russo foram igualmente cinco graus superiores à média.

A camada de pergelissolo derreteu, edifícios perderam por isso a sustentação e colapsaram, e a época de incêndios florestais foi intensa e prolongada. A 20 de junho, a estação de Verkhoyansk registou máximas recorde de 38ºC. Outras cidades atingiram os 45ºC-
Um outro estudo, sobre esta onda de calor do primeiro semestre de 2020, concluiu que as emissões industriais e agrícolas a tornaram 600 vezes mais provável.

“Ao combinar os valores dos modelos e das observações do tempo, verifica-se que para a região [em torno de Verkhoyansk] a mesma onda de calor de seis meses teria sido cerca de 12 graus celsius mais fria se tivesse ocorrido em 1900”, referem os investigadores.

“Para Verkhoyansk, as temperaturas máximas de junho aumentaram pelo menos um grau face a 1900, devido às alterações climáticas”, acrescentam. “Até 2050, esta região siberiana poderá esperar um aumento médio de temperaturas de pelo menos 2.5 graus face a 1900, mas o aumento poderá ser de até sete graus” face a esse período ou de cerca de cinco graus face aos dias de hoje.

“Mesmo com as alterações climáticas, esta onda de calor prolongada foi uma ocorrência rara, expectável apenas uma vez em 130 anos”, refere ainda o mesmo estudo.

Os climatologistas esperam que a tendência de aquecimento se irá manter até o Ártico ter o seu primeiro verão sem gelo desde que há registos. “É uma questão de quando, não de se”, afirma Maier, apontando para uma data algures entre 2030 e 2050.
Desequilíbrio
O aquecimento da atmosfera não é a única razão pela qual o Ártico está a aquecer a um ritmo duas vezes superior à média global.O Mar de Laptev é um mar ligado ao Oceano Ártico, no norte da Ásia, que se estende até ao cabo Ártico, numa extensão de 672 mil km quadrados. A oeste fica o Mar de Kara e a leste o Mar Siberiano Oriental.

Fonte - Wikipédia
O Mar de Laptev é considerado uma das maternidades de gelo do Ártico, o qual se forma ao longo da sua costa durante o inverno e deriva depois para oeste, carregado de nutrientes, através do Oceano Ártico, até começar a desfazer-se na primavera, no estreito de Fram, entre a Gronelândia e Svalbard, no norte da Noruega.

Se o gelo se formar tarde no Laptev, será mais fino e por isso irá derreter provavelmente antes de chegar ao Estreito de Fram. Isso pode implicar menos nutrientes para o plâncton ártico, o que irá reduzir a capacidade de absorção do dióxido de carbono da atmosfera.

Uma maior expansão de água líquida também significa mais turbulência à superfície, o que traz à tona maior quantidade da água quente das profundezas, agravando o ciclo.

Stefan Hendricks, especialista em gelo marinho no Instituto Alfred Wegener, não está surpreendido com as tendências graves verificadas.

“É mais frustrante do que chocante”, afirma. “Isto já foi previsto há muito tempo mas a resposta substancial dos decisores políticos tem sido escassa”.
Impacto humano
Zachary Labe, do Colorado, não tem dúvidas quanto aos culpados do que está a suceder.

Sem uma redução sistemática dos gases de efeitos de estufa, a probabilidade do nosso primeiro verão sem gelo só irá continuar a aumentar”, afirmou ao jornal The Guardian.

Este ano, os países subscritores dos Acordos de Paris sobre o clima deveriam avaliar e elevar as suas promessas quanto ao corte de emissões. Até agora, apenas 14 o fizeram, incluindo a Noruega, o Chile, e as pequenas Ilhas Marshall. O bloco europeu, dos 27, garante que irá fazê-lo em dezembro.

A China, o maior emissor do mundo de gases de efeito de estufa, prometeu tornar-se neutral em termos de carbono até 2060. Mas ainda não reviu os seus planos climáticos para a próxima década.

Os Estados Unidos, sob Donald Trump, abandonaram os Acordos de Paris e seguiram o seu próprio rumo, muitas vezes através de iniciativas estaduais, no combate às alterações climáticas.

As próximas eleições presidenciais norte-americanas são seguidas com alguma ansiedade por climatologistas, economistas e políticos do mundo inteiro, também pela possibilidade da eleição do democrata Joe Biden, que já prometeu regressar aos documentos de Paris e cumprir o que ali ficou traçado quanto ao corte das emissões de gases efeito de estufa.

Cientistas das Nações Unidas referiram há quase um ano, em novembro de 2019, que, sem cortes substanciais nas emissões até 2030, será impossível reverter alterações climáticas catastróficas.

Os mais recentes investimentos russos indicam que planear para o presente com os olhos num futuro incerto parece ser a melhor estratégia.
Frota quebra-gelo e não só
Esta semana foi entregue às autoridades o mais potente navio quebra-gelo nuclear da armada russa, o Arktika, que deverá começar a operar na Rota do Mar do Norte já em dezembro e cuja maior faceta é a versatilidade.

De acordo com o primeiro-ministro russo, Mikhail Mishustin, presente na cerimónia do hastear da bandeira, em Murmansk, este novo navio “irá garantir a supremacia russa no Ártico e facilitar o futuro desenvolvimento da Rota do Mar do Norte como um corredor crucial de transporte”. A Rússia é “o líder indisputado do desenvolvimento dos territórios do norte”, disse Mishutin.

“Estamos orgulhosos da Rússia ser o único país do mundo capaz de desenvolver uma frota de quebra-gelos nucleares. E agora aceitamos um novo quebra-gelo universal, o Arktika. O navio tem equipamento inovador e um motor poderoso que lhe permite operar em todo o lado – no gelo, em águas profundas e em trilhas rasas”, acrescentou o governante russo.



Moscovo conta produzir mais dois navios da mesma classe nos próximos anos. Além de poderem quebrar gelo com três a quatro metros de espessura, poderão navegar oito meses sem tocar porto e tornam possível a navegação da Rota do Mar do Norte ao longo de todo o ano.

O aquecimento do Ártico tem sido acompanhado de perto pela indústria global mineira e de extração, devido às riquezas até agora impossíveis de explorar. Também a possibilidade de transportar carga através de rotas a norte irá refletir-se no comércio global e tornar-se alternativa, sobretudo se as épocas de furacões e tempestades vierem a agravar-se.
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