António Guterres. Mundo "entrou numa era de caos" imprevisível

por RTP
António Guterres na sede da ONU em Nova Iorque, janeiro 2024 Eduardo Munoz - Reuters

O secretário-geral da ONU discursou esta quarta-feira perante os diplomatas reunidos na Assembleia das Nações Unidas, considerando que o mundo está a entrar uma "era de caos" e denunciando um Conselho de Segurança incapaz de agir.

A crise em Gaza foi um dos exemplos especificamente mencionados por António Guterres para apontar a crise de raiva generalizada que parece dominar o mundo, com a ameaça contra Rafah a merecer críticas detalhadas.

"Estou especialmente alarmado com informações de que os militares israelitas tencionam concentrar-se a seguir em Rafah (sul da Faixa de Gaza) -- onde centenas de milhares de palestinianos foram espremidos numa busca desesperada por segurança", explicou o secretário-geral.

"Uma tal ação aumentaria de forma exponencial o que já um pesadelo humanitário, com consequências regionais incalculáveis", declarou Guterres.

Frisando que nada justifica os ataques lançados pelo grupo islamita Hamas em 07 de outubro, nem a punição coletiva do povo palestiniano, o ex-primeiro-ministro português salientou que as operações militares israelitas em Gaza têm resultado numa escala e velocidade de destruição e morte "sem paralelo" desde que se tornou secretário-geral da ONU.

O português exigiu ainda novamente um "cessar-fogo humanitário imediato" na Faixa de Gaza e a libertação de todos os reféns do Hamas.

Os recados de Guterres coincidem com uma nova ronda de negociações entre Israel e o Hamas, marcada para quinta-feira no Cairo. As perspetivas de acordo são escassas, depois de o Hamas ter requerido condições já rejeitadas por Israel.

Rafah, na fronteira de Gaza com o Egito, acolhe centenas de milhares de palestinianos, deslocados de outros locais do enclave devido à ofensiva militar israelita provocada pelo pior ataque deste século contra solo israelita, por parte do Hamas.
"Era de caos"
António Guterres é um líder mundial assoberbado por ameaças vindas de todo o lado. "O nosso mundo entrou numa era de caos", alertou, ao revelar as prioridades do seu gabinete perante a Assembleia Geral da ONU.

"Os governos ignoram ou minam os próprios princípios do multilateralismo, sem prestar contas", acusou. E "o Conselho de Segurança, principal instrumento para a paz mundial, está num impasse devido às fissuras geopolíticas", lamentou.

É uma divisão sem precedentes e ainda mais terrível devido aos "terríveis conflitos" que se multiplicam, considerou.

"Não é a primeira vez que o Conselho está dividido. Mas é a pior. O disfuncionamento atual é mais profundo e mais perigoso", diagnosticou o secretário-geral. "Durante a Guerra Fria, mecanismos bem estabelecidos auxiliaram a gerir as relações entre as superpotências", referiu António Guterres. Mas, "no mundo multipolar de hoje, tais mecanismos estão ausentes. O nosso mundo entrou numa era de caos".

"E estamos a ver os resultados: uma corrida de ratos perigosa e imprevisível, numa impunidade absoluta", apontou, preocupado com uma nova proliferação nuclear, após décadas de desarmamento nuclear, com os Estados a competir agora para tornar os seus arsenais nucleares mais rápidos, mais furtivos e mais precisos, e com o desenvolvimento de "novos meios de morte mútua e para a humanidade se aniquilar a si própria".
Paz, a "única coisa em falta"
"Precisamos de reforçar e renovar os quadros globais de paz e segurança para lidar com as complexidades do mundo multipolar de hoje", defendeu.

"Há atualmente tanta raiva e ódio e barulho no mundo. Parece que a cada dia, sob o menor pretexto, é a guerra. Conflitos terríveis que matam e que mutilam civis em níveis nunca registados. Guerras de palavras. Guerras de território. Guerras culturais", apontou Guterres, com veemência, apontando os milhões de pessoas envolvidas em conflitos em todo o mundo, onde a vida se tornou "um inferno diário mortal e faminto".

Apesar de a Organização das Nações Unidas ter sido fundada a partir da busca pela paz, a "única coisa que falta de forma mais dramática" no mundo de hoje é a paz "em todas as suas dimensões", criticou Guterres.

"À medida que os conflitos e as divisões geopolíticas aumentam, a paz no nosso mundo está ameaçada. À medida que a polarização se aprofunda e os direitos humanos são espezinhados, a paz dentro das comunidades é prejudicada. À medida que as desigualdades explodem, a paz com justiça é destruída. À medida que continuamos a nossa dependência dos combustíveis fósseis, desprezamos qualquer noção de paz com a natureza", declarou.

"Em todo o mundo, e em toda a gama de questões, a paz é a peça que falta. As pessoas querem paz e segurança. Querem paz e dignidade. E, francamente, querem paz e sossego", advogou.

Criticando aqueles que "vendem a matemática perversa que diz que se multiplica o apoio dividindo as pessoas", especialmente num ano em que metade da humanidade irá às urnas para votar, o líder das Nações Unidas sublinhou que construir a paz é um "ato consciente, ousado e até radical", mas é a "maior responsabilidade da humanidade".
Outros conflitos
E, se a guerra em Gaza é "uma ferida inflamada na consciência coletiva que ameaça toda a região", a da Ucrânia requer "uma paz justa e sustentável, em conformidade com a Carta e o direito internacional -- "para a Ucrânia, para a Rússia e para o mundo", aconselhou.

Ainda entre os obstáculos à paz, o líder da ONU identificou o terrorismo no Sahel, os combates no Sudão, os grupos armados no leste da República Democrática do Congo, as tensões no Mar Vermelho, a ilegalidade no Haiti e os Balcãs Ocidentais.

Apelou ainda a uma ação coletiva no Corno de África para preservar a integridade territorial, a um compromisso com eleições livres e justas na Líbia e a uma transição democrática e o regresso a um regime civil em Myanmar.

"As guerras destroem. A paz constrói" defendeu. "É a maior responsabilidade da humanidade. Essa responsabilidade pertence a todos nós -- individual e coletivamente. Neste momento difícil e dividido, vamos cumprir essa obrigação para as gerações atuais e futuras", concluiu.

Aprofundando a crise generalizada, "a par da proliferação de conflitos, as necessidades humanitárias mundiais estão a níveis record, mas os financiamentos não aparecem", lamentou ainda António Guterres.

Num tal contexto, o secretário-geral das Nações Unidas apelou aos governos do mundo inteiro para aproveitarem a "Cimeira do Futuro" marcada para setembro em Nova Iorque à margem da Assembleia Geral da ONU, para "modelar o multilateralismo para os anos que aí vêm".
Reformas urgentes
António Guterres adiantou algumas das questões que deseja ver resolvidas, mudanças "de que mundo realmente precisa", incluindo a reforma profunda do Conselho de Segurança para acolher membros de outros continentes.

"É totalmente inaceitável que o continente africano ainda esteja à espera de um assento permanente", realçou Guterres.

Frequentemente considerado obsoleto, o Conselho de Segurança já é alvo de pedidos de reforma e expansão há décadas, com países emergentes como a Índia, África do Sul e Brasil a pretenderem juntar-se aos cinco membros permanentes - Rússia, China, Estados Unidos, França e Reino Unido.

Em geral, quase todos os países da ONU consideram necessário reformar o Conselho de Segurança, mas não há acordo sobre como fazê-lo, com diferentes propostas na mesa há anos.

Ao longo dos anos, o poder de veto - detido exclusivamente pelos cinco membros permanentes - tem sido uma das questões mais polémicas e alvo de vários pedidos de modificação.

Esse tem sido, aliás, o mecanismo usado pela Rússia para impedir que o Conselho de Segurança atue contra si face à Guerra na Ucrânia.

De acordo com Guterres, os métodos de trabalho do Conselho também devem ser atualizados para que possa fazer progressos, "mesmo quando os membros estão fortemente divididos".

Além de uma reforma do Conselho de Segurança, o secretário-geral apelou também a uma reforma da arquitetura financeira internacional, a qual considera "desatualizada, disfuncional e injusta", uma vez que "favorece os países ricos que a conceberam há quase 80 anos" e "não cumpre a função básica de proporcionar uma rede de segurança financeira para todos os países em desenvolvimento".

Perante o corpo diplomático presente na Assembleia-Geral da ONU, Guterres aproveitou ainda para defender a necessidade de um envolvimento significativo dos jovens na tomada de decisões, um Pacto Digital Global para maximizar os benefícios das novas tecnologias e minimizar os riscos, assim como uma plataforma de emergência, "instrumento urgente para melhorar as respostas internacionais aos choques mundiais complexos", como a pandemia de Covid-19.

Com agências
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