George Floyd - Uma História Americana em Três Actos

por Felipe Pathé Duarte, comentador RTP

A sociedade norte-americana estagnou. E actuais protestos são um reflexo disso. Mas este texto não tem a pretensão de analisar legitimidades. Nem muito menos de as justificar. Procura somente pôr em contexto este tipo de movimento. Fazemo-lo em três actos e com uma cena final.

Acto I – A teoria
As sociedades mais abertas assentam num conflito social permanente. Dá-lhes estrutura, coesão e dinamismo. Ou seja, falamos da possibilidade de alteração da condição vigente – em acto ou em potência. Logo, quanto mais aberta for uma sociedade, mais tensão conflitual terá. A sua vitalidade e abertura depende disso. Aliás, em teoria o sistema político que caracteriza as democracias liberais prevê a institucionalização dessa mesma tensão. É uma espécie de válvula de escape onde, pela negociação entre as partes conflituantes, reside a esperança de alteração da condição social e política. São exemplo os parlamentos, os sindicatos ou actores da sociedade civil... O problema é quando isso falha – sempre que não há interlocutores ou agentes que viabilizem a procurada transformação social.

A sociedade norte-americana é muito fragmentada, mas também aberta. E, por isso, profundamente conflitual. É prova disso o histórico de movimentos que alteraram paradigmas sociais, sobretudo da década de 60. O que se passa hoje não é muito diferente dessa realidade. Parece ter deixado de haver uma regulação da tensão conflitual com a comunidade afro-americana. Não há margem para a resolução de problemas. E abrem-se as portas à radicalização e à “acção directa” como fórmula possível transformação (lembremos os Black Panthers de Stokely Carmichael). Do conflito social parte-se para a violência.
Acto II – A Prática
Portanto, estes activistas que vão para lá do conflito deixaram de confiar nos processos políticos, legais e sociais para atingirem os seus fins. Isto vale tanto para a esquerda como para a direita, sejam os Antifa ou os Boogaloo Boys. Genericamente, os do primeiro espectro porque vêm nas instituições um entrave aos seus avanços; e os do segundo porque vêm no poder uma permissividade que é um obstáculo à ordem pública. Por fim, ainda há os militantes de oportunidade que saqueiam o que podem e são mobilizados como uma espécie de lumpenproletariat para acelerar o processo de transformação pelo caos – vemos isso bem patente em Mineápolis. No fundo, pretendem obrigar o Estado a adoptar medidas consideradas importantes pelos movimentos que as defende; ou derrubá-lo se se recusar a adoptá-las.

Nada aqui é novo. O grande problema é que quem defende a “acção directa” como modus operandi, gravita num movimento social legítimo, não violento. Mas que parece já não ter grande margem de transformação. Chegou a um ponto limite, traduzido na permanente brutalidade policial e numa condição social insustentável. E isto vem muito antes da administração Trump, é preciso que se diga.
Acto III – O Desenlace
Porém, agora tudo agravou com a suspensão pandémica. A comunidade afro-americana está desproporcionalmente representada em termos epidemiológicos e económicos.

Mas ainda acrescentamos a anuência tácita, por parte do poder vigente, em relação a movimentos mais supremacistas. Eles também compõem o espectro eleitoral de Trump. O resultado pode estar patente num considerável aumento de ataques motivados por ideias supremacistas, xenófobas e anti-semitas. Como tal, neste momento, a desigualdade sistémica passou também a ser sinónimo de injustiça sistémica para a comunidade afro-americana.

Para já, a resposta ainda tem sido em torno do factor identitário. Mas o ponto de ruptura está próximo. Excedeu-se a dimensão conflitual e abriu-se a porta à violência. Com uma intervenção militar, o ressentimento por opressão e indignidade disparam. Logo, a mobilização será maior. E sem diálogo, a “acção directa” organizada poderá ser a solução para quem está desesperado. Assim, o movimento social perde legitimidade, tornando-se violento. Ou regride, deixando tudo como está, sem a transformação social; ou procura a ruptura. Em ambos os casos a bem-sucedida “experiência” de 1776 será seguramente posta em causa. Vejamos o que sucede.Cena Final
You will not be able to stay home, brother
(…) Because the revolution will not be televised. Subsituamos a televisão pelo Twitter ou Instagram e a spoken-word de Gil Scott-Heron torna-se premonitória. A mobilização pode ir muito além do determinismo tecnológico. A comunicação nas redes sociais não explica tudo. Os 140 caracteres ou os #BlackoutTuesdays de pouco servirão. Tudo isto nos parece perigosamente estrutural, numa sociedade que se estagnou porque teme o conflito social.
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