O que fazer aos arsenais de Assad? Quais são e onde podem acabar as armas do regime

por Graça Andrade Ramos - RTP
Rebeldes sírios e blindados em Tel Rifaat Mahmoud Hassano - Reuters

A queda do regime de Bashar al-Assad no domingo, dia 8 de dezembro de 2024, deixou a Síria e o mundo numa encruzilhada. O país tornou-se, de um dia para o outro, numa enorme carcaça a atrair abutres a milhares de quilómetros.

Os riscos de desagregação da Síria são tremendos e a probabilidade do poder vir a cair em mãos de islamitas e de grupos terroristas islâmicos, como a al-Qaeda ou o Estado Islâmico, é elevada.

Nestes "cenários aterradores", como lhes chamou a nova líder da diplomacia europeia, Kaja Kallas, o destino das armas presentes no território, é uma das principais preocupações internacionais, num cenário de vazio e incerteza políticas.

Para evitar que os jihadistas se apropriassem dos arsenais, o exército de Israel agiu com prontidão e destruiu 80 por cento das forças sírias nas primeiras 48 horas após a fuga de Assad para a Rússia. Em duas operações de grande envergadura, incluindo quase 500 ataques aéreos e de artilharia, terrestre e naval, as Forças de Defesa de Israel arrasaram depósitos de mísseis, aviões de combate, veículos armados, radares, baterias antiaéreas, aeródromos, 15 navios e dezenas de locais de produção de armamento, em Damasco, Homs, Tartus, Lataquia e Palmira.

Treze anos de guerra civil inundaram contudo a Síria de armas de todos os tipos e origens, tanto através de contrabando como de fornecimentos legítimos.

Os rebeldes sírios receberam apoio politico, logístico e militar sobretudo dos Estados Unidos e da Turquia, mas também da Arábia Saudita, do Qatar, do Reino Unido, de Israel e dos Países Baixos. 

Parte deste equipamento proveio da Líbia, tendo sido transferido após a derrota de Muammar Kadhafi, em 2011, através de serviços de informações ocidentais.

São arsenais atualmente sob controlo e que deverão ser expandidos com o que o exército de Assad tiver abandonado no norte e nordeste do país.

Mas o destino dos armamentos no centro e no sul será mais incerto, uma vez que a lealdade do exército de Assad poderá oscilar e o novo poder em Damasco, de transição, poderá demorar a estender-se ao resto do país.

Assad possuía ainda diversos centros de desenvolvimento e de produção de mísseis e de munições, incluindo armas químicas.
Destino: Ucrânia
Do ponto de vista dos Estados Unidos e da NATO, existem possibilidades atrativas na crise, como conseguir fazer fluir para a Ucrânia os equipamentos e munições acumulados pelo regime durante os anos soviéticos, à semelhança do ocorrido com a Líbia.

Os 20 por cento das capacidades regulares sírias que não foram alvo dos israelitas poderão ter assim como próximo destino a Ucrânia, incluindo caças, mísseis balísticos, munições e milhares de blindados.

Um fluxo de armamento, compatível com o ucraniano e de que Kiev necessita desesperadamente para combater as tropas de Moscovo, que poderá vir a ser cedido pelos grupos de combatentes sírios apoiados pela Aliança Atlântica, através da Turquia.

O secretário de Estado da Administração, Antony Blinken aterrou esta quinta-feira em Ancara. A transferência deverá ser um dos tópicos na agenda.

Moscovo também está a movimentar-se. O seu aliado húngaro, o primeiro-ministro Viktor Órban, avistou-se esta quinta-feira em Ancara com o presidente turco Recep Tayyip Erdogan. 

Oficialmente, Órban foi tentar obter um cessar-fogo na Ucrânia. Mas o líder húngaro irá também provavelmente, agora, procurar perceber qual a estratégia que a Turquia irá adotar na Síria, incluindo quanto ao destino a dar às armas de Assad.

Também esta quinta-feira, a Rússia anunciou que estabeleceu contacto com o comité político do grupo rebelde islamita que lidera a aliança armada que derrubou Assad, o Hayat Tahrir al-Sham ou HTS. A agência de notícias Interfax citou o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Mikhail Bogdanov, o qual sublinhou o interesse de Moscovo em manter as suas bases militares no país, para continuar a "lutar contra o terrorismo internacional".

Na semana passada, perante o avanço rebelde, o Kremlin ordenou a retirada precipitada dos navios e do submarino que tinha estacionados na base naval de Tartus e dos caças bombardeiros que apoiavam as forças de Assad a partir da base de Hmeimim.

A presença russa na Síria estendia-se contudo por duas dezenas de bases militares e 93 postos de observação, três quartos em áreas governamentais e o restante nos territórios curdos, no norte. 

A queda de Assad colocou toda essa colaboração em dúvida. E os Estados Unidos irão tentar tudo para evitar que ela se reestabeleça, incluindo oferecer aos novos senhores de Damasco a possibilidade de se reequiparem com armas norte-americanas e aliadas modernas.
Ameaças químicas e outras

Washington está ainda a apoiar os esforços da Organização para a Proibição de Armas Químicas, OPCW, para eliminar dos arsenais sírios este armamento, a tempo de evitar que caiam em mãos de jihadistas, uma das grandes prioridades para as potências ocidentais e para Israel.

Esta quinta-feira, em Haia, uma reunião dos 41 membros do conselho executivo da OPCW, à porta-fechada, abordou o envio e financiamento de uma equipa técnica para implementar na Síria um processo de identificação, análise e destruição dos processos de produção de armas químicas no país, revelou a embaixadora norte-americana da organização, Nicole Shampaine. A Síria tornou-se membro da OPCW em 2013, ao abrigo de acordo russo, prometendo destruir as suas armas químicas mas, durante os 13 anos de guerra civil, multiplicaram-se os indícios de que as tropas de Bashar al-Assad as usaram contra os seus inimigos e populações civis.

A OPCW supervisionou na última década a destruição de 1.300 toneladas de armas químicas e percursores na Síria, mas muito ficou por fazer.

"Queremos completar a missão e esta é uma oportunidade real para a nova liderança síria colaborar com a comunidade internacional", afirmou Shampaine à entrada para a reunião, na qual afirmou esperar "um grande apoio para aproveitar a ocasião", e "obrigar a Síria a cumprir as suas obrigações ao abrigo da Convenção de Armas Químicas".

O novo poder de transição, em Damasco, já garantiu que irá colaborar. Entretanto, os operacionais iranianos que permaneçam na Síria, poderão estar já a apropriar-se destas armas, transferindo-as para bases no Irão.

Israel afirmou, terça-feira, que as suas ofensivas destruíram os arsenais de armas químicas, uma das piores heranças de Assad. Se foram ou não todos neutralizados é contudo algo que terá de ser avaliado.

A existência de "unidades de desenvolvimento de armas químicas em larga escala não declaradas" e o nível de "produção de armas químicas em dois locais declarados" são duas questões que preocupam a OPCW, referiu em novembro o diretor da organização, Fernando Arias.

"O regime sírio, o regime de Assad, usou armas químicas, usou [gás] sarin, usou repetidamente bombas de barris de cloro, e nunca as declarou à OPCW, nunca as destruiu de forma verificada. Esse é inerentemente uma preocupação de proliferação", lembrou Shampaine.

Outra necessidade será inspeccionar o Centro de Estudos e Pesquisas Científicas e as suas diversas instalações de testes e arquivos, identificando os investigadores a ele associados e tentando impedir a difusão do seu conhecimento.

A missão do Centro, estabelecido em 1971, era pesquisar e desenvolver tecnologia de mísseis e armamento nuclear, biológico e químico.

Em 2012, cientistas e responsáveis iranianos e norte-coreanos começaram a participar das pesquisas e a operar nas bases e locais de testes do CERS para o desenvolvimento de novas armas.

A Síria nunca se tornou uma potência nuclear, contudo, em 2020, soube-se que serviços sírios haviam tentado adquirir na Alemanha tecnologia proibida de armas de destruição maciça, nucleares, biológicas e químicas.
Para quem agarrar

Em ambos os objetivos de Washington, o desvio de armas para a Ucrânia e a neutralização de arsenais químicos sírios e respetiva tecnologia, a rapidez é essencial.

Na terça-feira, dia 10 de dezembro, a Turquia bombardeou em Idlib, no norte, 12 camiões, carregados com mísseis, armamento pesado, dois blindados e caixas de munições, apreendidos pelas milícias YPG, as forças de defesa do povo curdo.

Fonte da Defesa turca referiu que o arsenal havia sido abandonado pelas forças armadas de Assad estacionadas em Qamishli, no nordeste da Síria, perante o avanço dos rebeldes e as ordens, oriundas de Damasco, para não resistirem.

Ações semelhantes de pilhagem e apreensão poderão estar a ocorrer por todo o país, desviadas para o mercado negro e por parte de grupos afetos ao Estado Islâmico ou simpatizantes.

Em causa, sobretudo os equipamentos até há 15 dias afetos às forças de Assad e não destruídos no início desta semana por Israel.

Pilhagem dos destroços de armamento destruído por Israel em Qamishli Foto: AFP

Irão e Rússia, assim como a milícia libanesa do Hezbollah, apoiaram nos últimos anos o regime do presidente sírio e o exército regular, mas este era já por si poderoso.
 
Ao longo das seis décadas que durou o regime dos Assad, pai e filho, o país preparou-se para um conflito em grande escala com Israel, investindo sobretudo em contingentes de blindados soviéticos T-62, entretanto modernizados, T-72 e T-55, muitos deles melhorados recentemente com tecnologia norte-coreana de longo alcance. No total poderão chegar aos 4.000 veículos. Os arsenais sírios acumulam ainda mísseis balísticos, soviéticos e norte-coreanos, apetecíveis para a Turquia e para a Ucrânia, assim como munições de artilharia, armas pessoais e outro equipamento. Os caças MiG-29 e Su-24 de força aérea síria poderão ser também úteis à Ucrânia.

Atualmente, os Estados Unidos têm 900 soldados destacados no norte da Síria, sobretudo em missões de neutralização do Estado Islâmico, e de proteção dos seus aliados curdos, que servem de tampão ao avanço dos islamitas.

Já as Forças Armadas da Turquia estão estacionadas ao longo da fronteira e em áreas a norte ocupadas pelos seus aliados, o Exército Nacional da Síria, desde 2016.

Umas e outras forças, aliadas na NATO, poderão assumir o papel de vigilantes para controlar o rumo das armas de Assad.
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