"O regime corre sérios riscos de falhar". Entrevista a Ali M. Ansari, um mês após a Guerra dos 12 Dias
Há pouco mais de um mês, o mundo assistia com estupefação à emergência de um novo foco de conflito direto no Médio Oriente que se mantivera latente durante décadas. Ao ataque de Israel contra o Irão, tantas vezes prenunciado e apregoado, seguiu-se uma investida norte-americana também inesperada contra instalações nucleares de Teerão. Mas a guerra aberta parece ter sido congelada e o conflito, entretanto designado como "Guerra dos 12 Dias", é um capítulo aparentemente encerrado. A RTP entrevistou o historiador Ali M. Ansari, diretor-fundador do Instituto de Estudos Iranianos na Universidade de St. Andrews, na Escócia, para tentar compreender o que mudou com estes desenvolvimentos e quais podem ser as consequências futuras.
Estas investidas surgiram após décadas de luta retórica entre os dois países, mas também no contexto da guerra em curso no Médio Oriente, que fragilizou o Hamas e o Hezbollah, e das negociações entre o Irão e os Estados Unidos para um novo acordo sobre o programa nuclear iraniano.
Nos dias que se seguiram, os ataques não cessaram enquanto se avultava a possibilidade de Washington entrar em jogo ao lado de Israel. Donald Trump pedia tempo para ponderar e a 19 de junho afirmava que a decisão poderia apenas chegar em duas semanas. Mas acabaria por ordenar a investida contra três instalações nucleares iranianas poucos dias depois, a 22 de junho, a que o regime dos ayatollas respondeu com um ataque circunspeto contra uma base norte-americana no Catar.
Foi neste cenário que o próprio presidente norte-americano anunciou, a 24 de junho, um cessar-fogo entre Israel e o Irão, recolhendo os louros do acordo e batizando o conflito com o nome pelo qual viria a ser conhecido.
Houve desde então várias versões sobre os danos provocados às instalações nucleares, desde afirmações de que o programa nuclear iraniano teria sido completamente “obliterado” ou que teria havido apenas um atraso de alguns anos na capacidade nuclear. Quanto ao número de vítimas, as autoridades de Teerão confirmaram 1.054 mortos e mais de 4.400 feridos, enquanto em Israel morreram 28 pessoas e mais de 3.200 ficaram feridas.
Pergunta: Um mês após a Guerra dos 12 Dias, com ataques mútuos entre Israel e o Irão, e o ataque dos EUA, o que mudou no Irão e no Médio Oriente? O que mudou com estes acontecimentos?
Resposta: Penso que o Irão e a República Islâmica do Irão enfrentaram um choque muito profundo no sistema. A ideia de que as coisas estariam a mudar de imediato foi provavelmente um pouco absurda, mas o facto é que as autoridades da República Islâmica fizeram um grande alarido e gabaram-se de estarem numa posição muito forte e de que Israel nunca ousaria atacá-los. Na verdade, a Guerra dos Doze Dias, tal como ficou - embora deva dizer que não creio que tenha terminado - mostrou muito claramente que, embora a República Islâmica tenha alguma capacidade de defesa antimíssil, as suas próprias defesas aéreas foram extremamente fracas e perderam o controlo do espaço aéreo em 72 horas.
Uma vez terminada esta fase de ataque, há muitas pessoas dentro do sistema a questionar o que aconteceu e porque é que aconteceu. Muitas pessoas dizem: ‘Esta não é a nossa guerra, é a guerra de um regime contra outro regime. Não é um conflito popular. Nenhum de nós está interessado, ninguém quer entrar em guerra com Israel ou, Deus nos livre, com os Estados Unidos’.
As pessoas não entendem que o tipo de ansiedade e tensão que encontramos no Irão, particularmente entre os jovens, se deve também ao facto de eles não só terem fortes afinidades com os EUA e o Ocidente em geral, mas também porque muitos deles possuem segundos passaportes, muitos deles possuem passaportes dos EUA. Há também muitos judeus iranianos e muitos israelitas iranianos.
Este é um dos aspetos que criou uma profunda ansiedade na sociedade em geral, porque não é fácil. Quando se está a combater Saddam Hussein no Iraque, é muito fácil. Os iranianos podem dizer muito claramente: ‘Não somos árabes, que não temos qualquer ligação com o Iraque’. Mas com os Estados Unidos, em particular, e muitos países ocidentais, há tantos iranianos no Ocidente, na diáspora em particular, que a situação se torna um pouco mais complicada.
A República Islâmica e a liderança da República Islâmica sempre se vangloriaram, falaram muito. Mas o que a Guerra dos 12 Dias demonstrou é que lhes faltou ação. E julgo que a noção de que houve um apoio nacionalista em torno da bandeira é discutível, para ser honesto. A reação imediata de qualquer pessoa é ficar chocada, está-se a ser bombardeado, obviamente, e reagir em termos de solidariedade. Mas não acho que essa solidariedade tenha realmente perdurado.
Penso que a poeira ainda tem de assentar, mas é muito mais complicado do que certamente o regime e os seus apoiantes gostariam que acreditássemos.
Em relação à guerra que mencionou, com o Iraque, a situação de agora já não é a mesma.
Nos anos 80, toda a gente foi combater contra o Iraque. Claro, a revolução era recente, as pessoas tinham esperança. Tinham o Estado iraniano, recém-herdado do Xá. Estavam num bom lugar, não perfeito, mas num bom lugar. Agora, 46 anos depois, a opinião predominante dos iranianos é ‘estamos fartos, não queremos combater’.
É um dilema interessante. Se olharmos para a França em 1940, antes da invasão nazi, tinha o maior exército, o melhor equipamento, era muito nacionalista, mas, no final de contas, também estava exausta. Estava moralmente fraca. Como consequência, caiu em seis semanas com a invasão alemã. Penso que isso é parte do problema que a República Islâmica enfrenta agora. As pessoas estão muito desligadas do que se está a passar. Não estão envolvidas.
Aliás, houve uma entrevista com uma jovem que achei muito interessante e ela aborda exatamente esse ponto. Ela diz que na década de 1980, as pessoas iam lutar, queriam lutar e defender o seu país. Hoje, as pessoas não estão interessadas. Porque a República Islâmica, enquanto sistema político, as oprimiu, reprimiu, fuzilou, aprisionou e ignorou sistematicamente. Por que razão, de repente, alguém deveria apoiar o regime?
Penso que o regime corre sérios riscos de falhar. Temos de ter muito cuidado com o que dizemos. Falamos de uma mudança de regime? De um fracasso do regime? De um fracasso do Estado? São coisas diferentes.
Julgo que estamos numa situação distinta de possibilidade de insucesso do regime. Isto significa, em última análise, que haverá alguma forma de mudança de regime. Mas tal desfecho pode assumir muitas formas diferentes.
Todos os que falam em mudanças de regime pensam no Iraque e no Afeganistão, mas é perfeitamente possível, por exemplo, que um novo Governo chegue ao poder no Irão possa ser, por si só, o prenúncio de alguma mudança no futuro.
O programa nuclear começou ainda sob o Xá. Mas é claro que a década de 1970 foi um período muito diferente, e o Xá tinha dinheiro, o Irão tinha dinheiro, tinha amigos. E os desenvolvimentos nucleares à época faziam parte de uma política mais ampla de diversificação energética. Uma das coisas em que o Xá queria apostar era na energia solar, o que faria muito sentido no Irão. Mas não há desenvolvimento nenhum nesse aspeto.
Diz no seu livro que a questão nuclear é uma distração de outros problemas, uma causa nacional.
O Irão, signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), suspendeu no início de julho a cooperação com a Agência Internacional para a Energia Atómica (AIEA). No entanto, insiste que o programa nuclear tem apenas fins civis e as autoridades citam uma fatwa do ayatollah Khamenei contra o uso de armas nucleares.
Nem mesmo os antigos parceiros que atuam por procuração.
Um jovem iraniano que ouvi dizia: ‘Na última guerra, a Guerra dos 12 Dias, a única coisa que o Hezbollah conseguiu fazer foi emitir uma proclamação’. E acrescentava: 'Acho que é a proclamação mais cara alguma vez feita'.
Desde o ataque do Hamas contra Israel, a 7 de outubro de 2023, várias mudanças ocorreram no Médio Oriente. Para além da guerra em Gaza contra o grupo palestiniano, as forças israelitas arrasaram o Hezbollah, no Líbano, um grupo com fortes laços ao Irão. Na Síria, deu-se a queda do regime de Bashar al-Assad em dezembro de 2024, um líder até então apoiado por Moscovo e Teerão. Todo o dinheiro e tempo investidos no Hezbollah e desta vez nem sequer conseguiram disparar um rocket. Tudo o que fizeram foi dizer que condenavam o ataque e apoiavam muito os seus irmãos no Irão. Não foi nada.
Os israelitas conseguiram desfazer completamente a estratégia iraniana no Médio Oriente nos últimos dezoito meses. Basicamente mostraram que é uma estratégia muito fraca. O mundo, o Ocidente em particular, acreditou no mito de que o Irão se tinha superado. De que, de alguma forma, tinha um Estado muito mais poderoso do que é realmente.
Um historiador como eu está sempre a olhar não para o exterior, não para a superfície, mas para o interior. O que está realmente a acontecer? As pessoas podem olhar e ver um carro bonito, mas se não tiver motor, não funciona. Têm de olhar para dentro e ver o que o impulsiona.
Acha que haverá protestos depois desta guerra, como houve, por exemplo, com o Movimento Verde em 2009?
Penso que depende do que o regime fizer. Mas as perspetivas de protestos são muito prováveis neste momento. Porque o regime está a tentar apresentar-se como o grande vencedor desta guerra e afirma: ‘conquistámos uma grande vitória’. Mas toda a gente diz: ‘Conseguimos ver que não é bem assim, por que razões estão a fingir?’
Como estão tão convencidos de que conquistaram uma grande vitória, julgo que continuarão a fazer uma série de apreciações erradas. Pelo menos por enquanto.
Agora, se surgir um movimento dentro do regime que diga: ‘não podemos continuar assim, temos de mudar’, então isso alteraria a dinâmica. Mas, neste momento, se me perguntar se é provável que haja protestos, eu diria que sim.
Os paralelos são muito impressionantes. É arrogância. Quase todos os regimes iranianos que conheço acreditam sempre que o povo os ama. Mas isso é parte do problema. E a posição do Xá era muito mais forte do que a deste regime. A diferença é que Khamenei e alguns dos líderes atuais são mais teimosos, são mais parecidos com [Bashar al-] Assad. O Xá não estava interessado em envolver-se em derramamento de sangue com o seu próprio povo, por isso tomou a decisão de partir. A posição de Khamenei é muito mais obstinada.
Mas no final de contas, a razão pela qual Assad sobreviveu foi devido ao apoio iraniano e russo. Neste momento, há um grande problema no sistema. Para efeitos de argumentação, digamos que há uma crise económica, o preço do pão dispara e que depois há os protestos. É muito difícil ver como é que o regime se vai defender a longo prazo. Não há soluções neste momento.
Uma solução possível, se quiserem ser realmente flexíveis - e julgo que Trump já ofereceu isso, mas os iranianos rejeitaram - seria ter um consórcio com Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Podem fazê-lo na Ilha de Kish, que é território iraniano, mas sob a supervisão das Nações Unidas ou dos Estados Unidos.
O Plano de Ação Global Conjunto (JCPOA) foi assinado em julho de 2015 em Viena. O Irão e um conjunto de países assinaram um acordo que previa o controlo e verificação do programa nuclear iraniano em troca do levantamento de sanções internacionais contra Teerão. Donald Trump retirou unilateralmente os EUA deste entendimento em maio de 2018. Essa era uma opção, um consórcio, mas os iranianos disseram não estar interessados. Mas, mais uma vez, a interrogação é: para que serve este urânio enriquecido? Têm um reator em Bushehr e o urânio enriquecido é fornecido pela Rússia. Esta é a grande questão.
No final de contas, o Irão pode ter um programa nuclear, tudo bem, mas a questão é o enriquecimento, como é gerido o enriquecimento. Se se quiser enriquecer urânio, penso que a única forma de o fazer é num consórcio sob supervisão rigorosa.
Mas, neste momento, não está em condições de obter mais cedências. Este foi um dos problemas do JCPOA: permitiu aos iranianos uma capacidade de enriquecimento excessiva, na verdade, também devido às cláusulas de caducidade. Significa que, em última análise, poderiam fazer um enriquecimento de urânio mais elevado a partir de certa altura.
De forma curiosa, dez anos depois, não estamos assim tão longe de onde poderíamos estar caso o JCPOA tivesse sido bem-sucedido. Como os iranianos sempre tiveram permissão para manter um certo grau de enriquecimento e manter parte da equipa técnica a trabalhar, havia controlos rigorosos sobre o nível de enriquecimento. Mas, uma vez cumpridas as cláusulas de caducidade, podiam fazer o que quisessem. Portanto, de certa forma, estaríamos a enfrentar esta crise de qualquer maneira.
As cláusulas de caducidade que constavam do acordo previam o levantamento automático das restrições ao programa nuclear iraniano, sobretudo a partir de outubro de 2023, assim como a imposição automática de sanções no contexto das Nações Unidas a partir de janeiro de 2026, caso o programa nuclear iraniano viole os termos do JCPOA. Os europeus que assinaram este acordo (Reino Unido, França e Alemanha) e também os Estados Unidos prometem a imposição de sanções da ONU já a partir de 29 de agosto.
Acontece que estamos a enfrentar esta crise após a retirada de Trump [do acordo], após muita inimizade, mas também após a guerra na Ucrânia. E o maior fiasco que os iranianos cometeram nos últimos cinco a seis anos foi decidir apoiar Putin na guerra na Ucrânia.
Se não tivessem apoiado Putin, não da forma tão explícita como o fizeram, teriam mantido os europeus. Mas os europeus ficaram muito irritados, principalmente os europeus de Leste, mas também a Alemanha e a França. Ficaram muito irritados com o facto de os iranianos terem fornecido drones e mísseis aos russos. Consideraram isso completamente desnecessário.
Acha que teria feito diferença? Uma posição diferente por parte dos europeus?
Eu acho que sim. Os europeus terão sido um pouco mais flexíveis em relação ao Irão. Nos seis meses antes da invasão russa, o Irão esteve prestes a concordar com o regresso dos americanos [ao acordo]. Para colocar tudo de volta à estaca zero. Mas continuaram a enrolar. Lembro-me que pensei, na altura, que eles acabariam por assinar, depois de esperarem até ao último minuto. Mas o que é notável é que parece que foram convencidos pelos russos a esperar. Disseram-lhes que conquistariam Kiev em três dias e que aí estariam numa posição muito mais forte. Bem, não foi o que aconteceu.
Quando se olha para esta questão, não acho que devamos ignorar os erros que o Ocidente cometeu. O Ocidente cometeu muitos erros neste processo. Mas não devemos também ignorar os erros que os iranianos cometeram. E os iranianos estão numa posição mais fraca. Deviam ter sido muito mais inteligentes na forma como abordaram a questão, mas não foram. Cometeram erros graves e acabaram também por alienar o seu próprio povo.