Pandemia agrava exploração infantil pela primeira vez em duas décadas

por Joana Raposo Santos - RTP
No Quénia, muitas crianças trabalham em lixeiras em busca de metal para vender. Thomas Mukoya - Reuters

O número de crianças sujeitas a trabalho infantil pode estar prestes a aumentar pela primeira vez desde o início deste milénio devido à pandemia de Covid-19. A UNICEF avisa que milhões de crianças estão em risco de exploração, numa altura em que escolas por todo o mundo fecham para controlar a propagação do novo coronavírus e em que as dificuldades económicas de muitas famílias levam mais menores a trabalhar para levarem dinheiro para casa.

Em apenas três bairros da cidade de Nairobi, capital do Quénia, pelo menos mil raparigas em idade escolar passaram a ser exploradas sexualmente desde março, quando os estabelecimentos de ensino nesse país africano encerraram.

Mary Mugure, que em tempos também foi forçada a prostituir-se, é a responsável por esses três bairros em nome da organização Night Nurse, fundada para ajudar raparigas que estão a passar por esse problema.

Segundo Mugure, que falou com a agência de notícias Associated Press, as cerca de mil menores que a pandemia lançou nesse caminho estão a tentar ajudar as famílias a pagar as contas, depois de a Covid-19 ter abalado ainda mais a já frágil economia.

A mais nova destas raparigas tem 11 anos. Muitas delas foram criadas por mães solteiras que recentemente ficaram sem emprego devido ao novo coronavírus. Agora, as menores dizem não recordar com quantos homens já tiveram de dormir desde o início da pandemia, nem quantos deles usaram proteção. As jovens exploradas sexualmente no Quénia consideram o risco de contrair Covid-19 ou VIH pouco importante quando a sua sobrevivência está em risco, numa altura em que a falta de rendimentos em casa põe em risco o acesso a comida.

Várias das jovens de Nairobi relataram episódios em que foram fisicamente agredidas após as práticas sexuais por exigirem pagamento – às vezes tão baixo quanto um dólar. “Se se ganhar cinco dólares nestas ruas, isso é ouro”, disse uma delas, de 16 anos, à AP.

“Agora consigo levar à minha mãe 1,84 dólares todos os dias, e isso ajuda-a a alimentar os meus irmãos”, contou uma das raparigas.
Quénia com 85 inspetores para 19 milhões de trabalhadores
A exploração infantil no Quénia não é só sexual. A mãe solteira Florence Mumbua contou à AP que trabalha com os seus três filhos, de sete, dez e 12 anos, numa pedreira a partir rochas debaixo do calor intenso de Nairobi.

A mulher, de 34 anos, disse ter ficado sem alternativa depois de perder o seu emprego como empregada de limpeza numa escola privada que encerrou devido à pandemia. “Tenho de trabalhar com os meus filhos porque eles precisam de comer e eu faço pouco dinheiro. Quanto trabalhamos em conjunto conseguimos fazer dinheiro suficiente para os nossos pequenos-almoços, almoços e jantares”, explicou.

Phillista Onyango, da Rede Africana para a Proteção e Prevenção da Exploração Infantil, com sede no Quénia, referiu à AP que muitos pais com baixos rendimentos preferem levar os filhos para trabalharem com eles agora que as escolas fecharam, em vez de os deixarem em casa, onde mais facilmente podem entrar no mundo do crime ou das drogas.

Segundo Onyango, as leis contra a exploração infantil no Quénia são demasiado laxistas. Apesar de considerarem que uma criança é alguém com menos de 18 anos, essas leis permitem que menores entre os 13 e os 16 anos trabalhem em part-time, num país onde existem apenas 85 inspetores de trabalho para 19 milhões de trabalhadores.
Casos do Gana, Costa do Marfim e Índia
O alerta da UNICEF chega na mesma altura em que um relatório na Universidade de Chicago concluiu que 43 por cento de todas as crianças entre os cinco e os 17 anos no Gana e na Costa do Marfim estão envolvidas em trabalho infantil, maioritariamente na produção de cacau.

Quase 20 anos depois de os maiores produtores de chocolate do mundo terem prometido acabar com os abusos laborais, estima-se que 1,5 milhões de crianças trabalhem na produção de cacau por todo o mundo, metade das quais no Gana e Costa do Marfim. O trabalho na produção de cacau inclui o manuseamento de objetos perigosos, o trabalho durante a noite e a exposição a produtos químicos.

na última década houve um aumento de 14 por cento no número de crianças sujeitas a exploração laboral nestes dois países, acompanhado por um aumento de 62 por cento na produção de cacau no mesmo período.

Outro relatório, desta vez lançado pela organização indiana Bachpan Bachao Andolan, dedicada ao resgate de crianças vítimas de tráfico, concluiu que o encerramento de escolas nesse país asiático devido à pandemia de Covid-19 fez aumentar a exploração laboral e sexual.

“Nos últimos seis meses, o trabalho infantil e o casamento de crianças tornaram-se mecanismos compensatórios para famílias que se endividaram ou caíram na pobreza durante a pandemia”, relatou ao Guardian Prabhat Kumar, vice-diretor da organização Save the Children India. “Ao mesmo tempo, a procura de trabalho barato, infantil, aumentou enormemente”.
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