Ucrânia debate-se com aumento acentuado de infeções resistentes a antibióticos

por Mariana Ribeiro Soares - RTP
Cerca de 1,14 milhões de pessoas morreram em todo o mundo por infeções resistentes a antibióticos em 2021 Wolfgang Schwan - Reuters

Os hospitais na Ucrânia que tratam soldados feridos na guerra registaram um aumento acentuado de infeções resistentes a antibióticos (RAM). Com o início da ofensiva, a Ucrânia transformou-se num "terreno fértil" para estes casos, devido à sobrelotação dos hospitais e à diminuição do número de médicos.

No hospital Feofaniya, localizado na periferia de Kiev, mais de 80 por cento dos pacientes admitidos apresentam infeções causadas por micróbios resistentes a antibióticos, de acordo com o diretor-chefe Andriy Strokan, citado pela BBC.

A resistência antimicrobiana (RAM) ocorre quando as bactérias evoluem e deixam de responder a antibióticos e outros medicamentos, tornando-os ineficazes. No caso da Ucrânia, estas infeções têm origem maioritariamente nos próprios hospitais, que estão lotados desde o início da guerra e não conseguem, por isso, seguir os protocolos rigorosos de higiene e usar equipamentos de proteção para minimizar a propagação destas infeções.

"Nos departamentos cirúrgicos, há uma enfermeira que cuida de 15 a 20 pacientes. Ela fisicamente não consegue desinfetar as mãos na quantidade e frequência necessárias para não espalhar infeções”, explica Strokan.

Para além do aumento exponencial do número de pacientes, os hospitais têm assistido também a uma diminuição do número de médicos e de outros profissionais de saúde, que fugiram da guerra ou juntaram-se ao exército.

Ao contrário de outras guerras – como a do Afeganistão por exemplo, onde os soldados ocidentais eram estabilizados no local e transferidos por via aérea para uma clínica europeia – os soldados feridos na Ucrânia passam por várias instalações médicas para serem tratados, o que ajuda na proliferação de infeções por RAM. Isso acontece devido ao elevado fluxo de pacientes, o que obriga à constante transferência dos feridos para libertar espaço nos hospitais.

"Em termos de controlo microbiológico, significa que eles espalham [bactérias] para mais longe. Mas se isto não for feito, não conseguimos trabalhar. É uma catástrofe”, explicou Volodymyr Dubyna, chefe da unidade de cuidados intensivos do Hospital Mechnikov, em Dnipro.

Estas infeções devem ser tratadas com antibióticos especiais da lista de "reserva". Mas quanto maior for o número de prescrições destes medicamentos, mais rápido as bactérias se adaptam, tornando esses antibióticos ineficazes também.

"Temos de equilibrar as nossas escalas. Por um lado, temos de salvar um paciente. Por outro, não podemos criar novos microrganismos que terão resistência antimicrobiana", explica Strokan.
“Nunca vi nada parecido”
Num artigo publicado em novembro último, a revista Science também explica como a Ucrânia se transformou num “terreno fértil” para bactérias letais resistentes a medicamentos.

“É revelador o quão incrivelmente resistentes algumas das bactérias que saem da Ucrânia são. Nunca vi nada parecido”
, disse Jason Bennett, diretor do Repositório de Organismos Multirresistentes e da Rede de Vigilância do Instituto de Pesquisa do Exército Walter Reed (WRAIR), citado na revista Science.

O uso indevido de antibióticos é um dos fatores-chave para a resistência destas infeções. Se um soldado ferido não puder ser enviado rapidamente para um hospital, os médicos são "mais propensos a dar antibióticos de amplo espectro" para prevenir a infeção, o que pode "colocar lenha na fogueira" ao promover a evolução e a disseminação de genes com resistência aos medicamentos, explica Scott Pallett, médico e microbiologista do Royal Centre for Defence Medicine.

A revista científica explica que a proliferação de doenças resistentes a antibióticos é um problema antigo na Ucrânia e que apenas se acentuou desde a invasão russa. Tal como noutros países da antiga União Soviética, antibióticos de amplo espectro são vendidos sem receita na Ucrânia, o que leva ao seu uso indevido e, por sua vez, ao desenvolvimento de organismos com resistência a antibióticos.

Os números de RAM na Ucrânia começaram a subir em 2014, após o início dos combates entre tropas ucranianas e separatistas apoiados pela Rússia na região de Donbass. Um estudo de 2020 estimou que quase 20% das infeções hospitalares na Ucrânia envolveram bactérias multirresistentes — sendo a Klebsiella a mais comum. Em 2021, a Ucrânia tomou medidas para conter a RAM, incluindo a regulamentação das vendas de antibióticos, mas essas medidas fracassaram após a invasão russa em fevereiro de 2022.

Este é, no entanto, um problema que vai para além das fronteiras da Ucrânia. Cerca de 1,14 milhões de pessoas morreram em todo o mundo por infeções por RAM em 2021, de acordo com a revista The Lancet. Até 2050, o artigo prevê que a RAM poderá contribuir para dez milhões de mortes por ano.
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