Ângelo Girão falou com a RTP sobre a vida que dedicou ao hóquei em patins RTP

Entrevista de Ângelo Girão à RTP. "Estou muito feliz com tudo aquilo que consegui ao longo destes anos"

É uma das figuras incontornáveis das últimas décadas do hóquei em patins em Portugal. Ângelo Girão terminou a carreira aos 35 anos depois de vários anos a defender a baliza do Sporting e a Seleção Nacional. O antigo guarda-redes deu uma entrevista à RTP e explicou as razões que o levaram ao fim da carreira, falando no percurso "lindo" que viveu com Portugal, dando destaque ao título Mundial de 2019. Por fim, acredita que o hóquei português vai continuar a ser referência global e pede trabalho das federações internacionais para que se equiparem. Agora, o futuro passa pela família e pelos negócios que cimentou fora do hóquei.

 Veja a entrevista completa ao antigo campeão do mundo de hóquei patins Ângelo Girão

RTP Notícias: Gostava de começar por perguntar porquê terminar a carreira no fim desta temporada?

Ângelo Girão: Obrigado pelo convite. O acabar da carreira tem que ver com uma só questão: as propostas que tive para continuar a carreira significavam que tinha de mudar a minha vida toda. 

Agora que tenho a família e a vida profissional toda estabelecida, as propostas não chegaram em tempo útil e como tal não tive tempo para pensar noutra possibilidade que não fosse acabar a carreira e com muita pena minha vou ter que abandonar o hóquei sabendo, porém, que muito daquilo que perspetivei no início de carreira consegui atingir. 

Talvez tenha ido além daquilo que perspetivava e por isso estou muito feliz com tudo aquilo que consegui ao longo destes anos.

Estiveste muitos anos no Sporting. Se o clube tivesse renovado contigo, continuarias a jogar hóquei?

Sim. Dediquei grande parte da minha carreira ao Sporting. A maior parte da minha carreira sénior foi no Sporting. Sinto que entreguei tudo de mim a uma causa, a um clube, a tentar que o clube estivesse num patamar em que está hoje em dia. 

Consegui, do meu ponto de vista e de muita gente, deixar o clube melhor do que aquilo quando entrei e claramente que isso tem influência. Eu queria continuar em Lisboa, queria continuar no Sporting, independentemente desta renovação, talvez fosse ter outro papel mas não dependia de mim a continuação e como tal, a partir do momento em que o Sporting decidiu não renovar comigo, e eu percebi que isso não ia acontecer, procurei outras alternativas. 

Não aparecerem em tempo útil para eu poder continuar a carreira e por isso é que acabei por abandonar e deixar de jogar.

Tiveste abordagens de outros clubes para poderes continuar a carreira?


Tive. Em novembro, estive quase para assinar com um clube. Acabou por não acontecer por questões económicas: propuseram-me uma coisa e depois acabou por ser outra. E agora tive o convite de um clube de lá de cima mas como disse o que hoje em dia eu tenho, as minhas filhas, a minha mulher, a minha vida extra-hóquei está toda cá em Lisboa e a fazer as coisas teria de ser com tempo. E por isso decidi não aceitar essa proposta. 

O futuro só a Deus pertence, neste momento a minha ideia está cimentada é isto que eu quero mas não vou dizer que não até à última e depois pode acontecer alguma coisa. Neste momento, a minha perspetiva está em acabar a carreira e nada em contrário faz prever que eu volte aos rinques.

Como descreves a carreira que tiveste na equipa do Sporting?

Só posso estar agradecido ao Sporting e às condições que me deram, às equipas que conseguiram formar, a qualidade humana e a qualidade hoquística que conseguiram agrupar no clube. Em termos de carreira está acima das minhas expectativas. 

Eu e todo o mundo do hóquei não esperava que o Sporting com pouco tempo tivesse conseguido chegar ao topo, porque não era fácil. Havia equipas que já estavam cimentadas no topo, com estruturas, com muitos anos de hóquei em patins. Penso que o Sporting veio trazer uma lufada de ar fresco ao hóquei em patins. Veio dinamizar, voltou a colocar o hóquei no patamar dos desportos aqui em Portugal. 

Penso que o nosso trajeto diz um pouco daquilo que conseguimos fazer ao longo destes anos no clube, não só em termos de títulos mas também da forma como conseguimos cativar os adeptos, trazer os adeptos ao pavilhão e isso também é muito importante para mim.

Em termos de títulos, quais foram os grandes momentos que tiveste no Sporting?

No Sporting acho que tenho de dizer todos, porque o Sporting vinha de 20 anos sem secção, vinha de um patamar de luta para não descer e logo no primeiro ano conseguimos ganhar a Taça CERS. Todo o trajeto que tivemos no Sporting foi sempre em crescendo em que vamos ganhando títulos que o Sporting já não ganhava há 20, 30 ou 40 anos. 

Se me dizias que era possível no primeiro ano dizer, no final do terceiro ano, que seríamos campeões nacionais e que no final do quarto íamos ser campeões europeus, eu diria que era impossível. No entanto, acabou por acontecer e estou muito orgulhoso de tudo o que conseguimos conquistar em conjunto no Sporting.

Fizeste formação pelo FC Porto. Que ensinamentos e memórias tens desses tempos que depois te levam a seres o jogador em que te tornaste no Sporting?

Comecei no Estrela Vigorosa Sport e depois estive no FC Porto e acabei a formação no Gulpilhares. Todo esse trajeto veio ajudar-me e tornar na pessoa que sou hoje. Os clubes do norte são clubes muito aguerridos com a mística do querer, da vontade. Acho que consegui trazer e transportar isso na minha formação do FC Porto.

Estive também em Gulpilhares, que se não era igual, era pior do que aquilo que o FC Porto tinha. Isso conseguiu-me cativar e passou pela minha educação desportiva toda a vontade de querer ganhar, de querer a vitória. E depois faz com que no início da minha carreira também tenha conseguido transportar isso para os clubes onde estive: foi a Académica de Espinho e o Valongo, sendo que o Valongo é outro clube à imagem dos clubes do norte. 

E de toda essa experiência que eu tenho, acho que consegui trazer para o Sporting para depois poder demonstrar dentro de campo essa vontade toda.

A nível de clube achas que te faltou ganhar alguma coisa ou conseguiste conquistar tudo o que querias?

Não, acho que falta sempre. Nós, na alta competição, nunca estamos contentes com aquilo que ganhamos. Nunca ganhas o suficiente. Ainda ontem estava falar com o Rafa e o Henrique (jogadores do Sporting) e estávamos a dizer isso: parece que nunca chega aquilo que a gente ganha porque fica aquele amargo de boca. 

Podíamos ter ganho aqui, Podíamos ter ganho ali. Da mesma maneira que do outro lado pensam igual, os que perderam na altura connosco, também devem pensar da mesma maneira mas isto faz parte da alta competição e o que ser atleta de alta competição significa para nós.

Passemos para a Seleção Nacional. Gostava que me fizesses uma descrição daquilo que foram os teus anos enquanto guarda-redes de Portugal?

A Seleção Nacional foi um percurso lindo. Era aquilo que sempre sonhava quando comecei a jogar. Tive a sorte de poder representar a Seleção em todos os escalões, de chegar cedo e de forma prematura aos momentos de seleção e depois ter a sorte de ter atletas, ou seja, a nossa geração entrou para a Seleção sempre junta ou com pouco espaço temporal. E fazer isso com amigos e pessoas de quem eu gosto foi mais fácil e eu adorava os momentos de seleção. 

As pessoas olham para a competição mas a pré-competição era muito bonito. Nós passávamos muito tempo juntos. Pessoas com quem não privava ou não conseguia privar por causa dos clubes, da distância, pessoas que eram minhas amigas, passávamos muito tempo juntos e isso cimentou a nossa amizade fora de campo e ajudou-nos a cimentar Portugal num patamar em que tem que estar. 

Acho que nós devíamos e podíamos ter ganho mais títulos mas também não era fácil porque vínhamos de uma seleção espanhola que dominou durante doze anos todo o hóquei, que ganhou tudo o que havia para ganhar de uma forma consecutiva. 

Conseguimos retirar a Espanha desse patamar, voltamos a pôr Portugal nas finais, voltamos a pôr Portugal nas vitórias e acho que o trabalho das próximas gerações é continuar esse percurso e ganhar mais do que esta porque temos qualidade e obrigação de ganhar mais do que aquilo que ganhámos.

Desses tempos de seleção que grandes momentos passaste e o que faltou ganhar com Portugal?

Ganhar o campeonato do mundo [em 2019] foi um sonho de criança pela nossa seleção, ouvir o hino, estar dentro de campo com amigos, com pessoas de quem gosto muito foi fundamental para mim, termos de realização pessoal, enquanto atleta. 

Consegui ser campeão do mundo pelo meu país e acho que é o momento mais marcante da minha carreira. Ficar a faltar foi o ganhar mais vezes. Perdemos muitas finais e foi mais por culpa própria do que de terceiros. Sei que aqui em Portugal, e é transversal a vários desportos, a culpa acaba sempre por ser de alguma coisa. 

Acredito e sei que houve finais em que aconteceu isso, nomeadamente na Argentina, na final do campeonato do mundo mas não chega só isso para explicar que esta geração não tenha ganho mais vezes, com tantas finais que disputámos ganhar apenas um Europeu, um Mundial e quatro Taças das Nações, é francamente pouco para a qualidade que nós temos enquanto atletas.

O que te espera no futuro e haverá possibilidade continuares no hóquei?

Neste momento não, a minha perspetiva, a não ser que haja algo que mude muito, que seja algo com que não esteja contar… neste momento vou deixar de jogar e não vou ter nenhum cargo dentro de pouco tempo ligado ao hóquei em patins. 

Tenho a minha vida fora do hóquei já cimentada, montada, está tudo a rolar. Tenho as minhas empresas. Tenho uma empresa de investimentos, tenho uma empresa de produtos off market de imobiliário, tenho uma creche.

Tenho pessoas que confiaram em mim e que precisam do meu trabalho e eu tenho de estar presente, por isso, neste momento, o hóquei em patins não vai estar presente na minha vida.

Será o Ângelo Girão o melhor guarda-redes de sempre do hóquei em Portugal?

Eu acho que não, sinceramente eu acho que não. Quer em termos de títulos, quer em termos de atitudes, ser o melhor guarda-redes significa mais do que defender bem. Sinto que posso estar nessa conversa e isso para mim já é suficientemente agradável de se ouvir e fico realizado por ouvir que o meu nome pode estar nessa conversa mas genuinamente acredito que não. 

Sinto que inspirei jogadores e pessoas que partilharam comigo o balneário a serem melhores e isso para mim também é muito bom de se ouvir mas claramente Portugal tem uma história incrível de guarda-redes. Estar a dizer que sou o melhor guarda-redes é extremamente injusto e isso deixo para uma conversa de café. Serve para o que serve. 

A mim, só meu nome estar ligado a tantos nomes da modalidade, com história e que só ouvia falar, alguns nem tive o privilégio de ver, só de ouvir o meu nome ligado a essas lendas do hóquei em patins já fico muito feliz e muito contente.

Qual é o legado que deixa o guarda-redes Ângelo Girão para o hóquei em patins em Portugal?

Acho que o legado que deixo é mais do que baliza é mais pelo que consegui inspirar as equipas a fazer, aquilo que conseguia transmitir às equipas, aquilo que consegui retirar de cada um. 

Retirando a parte má, que às vezes também conseguia aportar ao jogo, acho que é o pior que tiro, e que sempre disse que as novas gerações não devem olhar, mas a amizade, a entreajuda, o espírito de equipa, a família, a superação acho que isso é o legado que eu deixo e sinto que deixei isso no balneário do Sporting e todos aqueles que partilharam balneário comigo sabem e conseguem perceber que aquilo que eu tentava fazer era sempre para o melhor da equipa.

Gostava que me desses a tua opinião sobre o que vai ser o hóquei patins em Portugal?

Eu acho que o futuro do hóquei em patins em Portugal é risonho. Sinto que a federação está a trabalhar bem o futuro do hóquei. Sinto é que as federações internacionais têm as mesmas pessoas há muitos anos e faz com que não saia desta situação e muda regras um ano, e muda regras no outro. Sinto que era preciso haver uma renovação total das federações internacionais para que o hóquei na Europa se equipare ao hóquei em Portugal. 

O hóquei em Portugal é sem dúvida o melhor do mundo. Acho que as regras podiam ser mais claras para o adepto comum que vai ao pavilhão em vez de mandarem vir tantas sem saber sobre o que estão a mandar vir. E depois também a mensagem que por vezes queremos fazer passar, de que perdemos por causa dos árbitros. 

Acredito que o árbitro possa errar, como eu erro, como o jogador erra mas que o erro não seja propositado. E vimos agora nas finais dos playoffs e nas meias-finais. O Sporting acabou por perder com o FC Porto e foram cinco jogos extremamente bem apitados, com erros, mas que os árbitros estiveram de uma forma geral muito bem, estiveram para ajudar ao espetáculo. Falavam com os jogadores, aceitavam o diálogo e acho que isso é importante. 

O hóquei em patins só tem a ganhar quando se juntar todas as entidades, jogadores, treinadores, diretores, clubes e árbitros. Acho que era importante haver um diálogo construtivo para melhorar o hóquei em patins não só a nível português mas a nível mundial fundamentalmente.

E em relação às equipas portuguesas o que esperas?

Ao contrário do que encontrei há 11 anos, o Sporting vai ter uma equipa para lutar já por todos os títulos no próximo ano e para estar nas decisões. O FC Porto é o atual bicampeão nacional, vai continuar a estar nas decisões e a ter uma equipa fortíssima. O Benfica tem a melhor equipa do mundo, de longe, nada a dizer, tem dois excelentes guarda-redes, vai ficar com uma equipa simplesmente estratosférica mas que poderá não se traduzir em títulos. 

Partem como favoritos mas isso acarreta pressão mas o Sporting e o FC Porto vão estar aí. O [Óquei de] Barcelos e a Oliveirense acredito que vão estar nas discussões mas partem claramente como ‘underdogs’ e só uma época fantástica à imagem do que o Barcelos fez este ano os poderá levar à decisão de algum título, porque realmente estas três equipas para o ano, pelo que vão ter à sua disposição vão partir na grelha da frente sendo que o Benfica poderá partir um bocado mais à frente do Sporting e do FC Porto.