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Jorge Andrade. "Eu achava que era invencível até ter a lesão"

Entrevista de Jorge Andrade, antigo internacional português, ao site da RTP.

Começou no Estrela da Amadora, notabilizou-se no FC Porto, nutre um grande amor pelo Deportivo da Corunha e fez dupla com Ricardo Carvalho na seleção portuguesa no inesquecível Euro 2004. Jorge Andrade deu uma entrevista à RTP onde falou de uma carreira recheada de histórias e quais os grandes objetivos para o futuro.

1 – Quais foram os teus primeiros passos no futebol enquanto jovem?

Jorge Andrade: Tive a sorte de dar meia-dúzia de passos e estar num campo de futebol, a Reboleira, na Amadora. Todos os meus colegas da minha idade, que jogávamos na rua, foram prestar provas ao Estrela da Amadora e começámos a jogar na nossa equipa do bairro. Na altura já era uma equipa bem estruturada, começou a subir patamares, enquanto era jovem o Estrela foi para a primeira divisão, venceu uma Taça de Portugal e os nossos fins de semana eram passados a ver jogos do Estrela da Amadora e a jogar pelo clube. Comecei com oito anos e até aos 22 joguei no Estrela. A transição de jovem para sénior foi fácil porque era o clube da minha cidade, ou seja, tive tudo muito facilitado. Éramos super-mimados e correu bem.

2 – Lembras-te de como foi a tua estreia como profissional pelo Estrela?

JA: Sim. O nosso treinador era o Fernando Santos, que é o selecionador nacional hoje em dia, e logo na primeira jornada fui convocado mas não joguei e só me estreei contra o Vitória de Setúbal. Não me lembro da jornada e depois também joguei na Taça. Foi o meu primeiro ano, não joguei muito, também estive lesionado, com uma entorse mas foi fantástico porque comecei a jogar com aqueles jogadores que ia ver ao fim de semana e foi um ano muito bonito. No penúltimo jogo, jogámos contra o Benfica e eu tive a possibilidade de fazer o meu primeiro golo na primeira liga, vencemos nesse jogo e acabei a época com uma experiência bastante boa o que fez com que o resto dos anos fosse bom. Fiquei mais dois anos no Estrela da Amadora, mudámos de treinador, saiu o Fernando Santos e entrou o Jorge Jesus e foram mais dois anos em que aprendi muito com um outro treinador que hoje em dia ainda está a trabalhar bem.
3 – Dos anos que estiveste no Estrela da Amadora, quais são as melhores memórias que guardas desse tempo?

JA: O simples facto de ir a pé para os treinos com os meus colegas, irmos juntos. A maioria fez contrato profissional e por isso era como se estivéssemos a jogar na rua, sem pressão, os adeptos eram os nossos vizinhos e viam os nossos jogos mesmo na primeira divisão. O estádio era pequeno mas tinha um ambiente especial e eu adorava. Gostava de jogar sem pressão e com esses treinadores que fizeram um caminho muito bom. Era como ir à escola.

4 – Em 2000, vais para o FC Porto. Quais foram as grandes diferenças que sentiste de um clube para o outro?

JA: O Estrela tinha uma estrutura já profissional e estava num contexto em que estava a morar com os meus pais. A diferença foi mudar de cidade, foi a falta dos pais em casa, a mudança de rotinas e ir para uma cidade que ao princípio parecia que ia ser tudo novo e diferente mas com mais pressão mas estranhamente adaptei-me muito bem. Na altura, tive também o meu irmão que foi jogar para o Salgueiros, os colegas eram muito simpáticos, o Fernando Santos já tinha sido meu treinador, o Hilário já tinha sido meu colega. Pensava que a pressão ia ser maior e a pressão nos jogos existia efetivamente visto que era uma equipa que vinha de uma série de grandes vitórias mas, no entanto, em termos de adaptação foi muito fácil visto que as pessoas nos fizeram sentir à vontade. Tínhamos um senhor que era o Domingos Pereira que nos levava a todo o lado, tratava das simples coisas do dia-a-dia e fomos muito acarinhados.

5 – E como foi a relação com Pinto da Costa?

JA: Foi muito fácil, o primeiro dia em que o vi foi o dia em que assinei contrato e achei-o uma pessoa muito engraçada, com humor cirúrgico, uma coisa fora do normal, e depois tornou-se uma relação de confiança visto que ele confiou que eu podia ajudar o FC Porto naquela altura. As coisas aconteceram, fui para o FC Porto, consegui jogar, consegui ser vendido e é uma pessoa com quem tenho uma relação muito boa visto que é muito fácil estar ao lado dele.

6 – Que títulos é que não venceste e gostavas de ganhar com o FC Porto?

JA: Jogar no FC Porto e não ganhar nada naqueles anos era difícil, por isso, quebrou-se ali uma série de campeonatos vencidos. Faltou mesmo só vencer o campeonato no ano em que cheguei. A equipa estava há um ano sem vencer quando cheguei e perdemos a Liga para o Boavista por um ponto, mas de resto estive dois anos no FC Porto, tive muita facilidade em entrar na equipa, tinha jogadores da minha posição muito competentes e que não aqueles que estavam só a lutar pelo lugar, também estavam a ensinar, como o Jorge Costa, o Aloísio, jogadores muito experientes. Jovens como eu, Ricardo Carvalho, Ricardo Silva, Ricardo Costa, foram muito ajudados na posição e gostei muito da fase que passei no FC Porto. Progredi muito, fui chamado à seleção, foram anos muito bons.

7 – Entretanto fazes a estreia na seleção. Lembras-te de como foi a tua estreia e de como foi o encontro pela primeira com o balneário?

JA:
Sim. Fui convocado várias vezes, mas a minha estreia só aconteceu num amigável contra a França. Perdemos 4-0 e foi no Stade de France, depois de Portugal vir do Euro 2000, onde perdemos com a França nas meias-finais. Foi um jogo em que a França estava na sua máxima força, era a campeã europeia, aqueles jogadores também tinham sido campeões mundiais. Foi um jogo muito difícil contra uma equipa que jogava em casa e tinha todas as suas estrelas. Nós estávamos numa fase de mudança, com alguns jogadores novos a entrarem, daí que o resultado tenha sido muito díspar. No entanto, jogadores como Fernando Couto ajudaram muito na seleção, Jorge Costa já lá estava, os jogadores que estavam no FC Porto também iam à seleção, tinha alguns colegas que jogaram comigo nos sub-20 e a adaptação também foi fácil com o António Oliveira que era o selecionador e deixava os jogadores estarem à vontade.

8 – Estiveste presente no Mundial 2002. Como descreves a prestação portuguesa nesse mundial?

JA:
No Mundial de 2002 existia muita pressão sobre os jogadores para fazerem uma grande prova. Porquê? Quase todos tinham sido campeões do mundo ou de Riade ou de Lisboa de sub-20 e estiveram no Euro 2000 em que chegámos às meias-finais e era uma das últimas oportunidades para muitos de jogar um mundial. Essa pressão fez com que quisessem estar lá todos e estavam grandes craques mas como equipa tivemos dificuldades no primeiro jogo com os Estados Unidos. Fizemos um jogo bom com a Polónia, ganhámos 4-0, mas perdemos com a Coreia e perdeu-se a magia de uma geração fantástica, visto que sentimos a pressão de que era a última oportunidade para alguns jogadores e a partir daquele mundial alguns não foram mais à seleção. Se aquela geração estivesse tranquila e relaxada, tinha jogadores muito bons para chegar mais longe, uns quartos-de-final, uma meia-final, visto que a Coreia chegou às meias-finais nesse ano. Acho que a nossa seleção era superior.

Foto: Jorge Andrade festeja com Cristiano Ronaldo vitória sobre a Inglaterra, nas grandes penalidades, no Euro 2004 - Reuters
9 – No Euro 2004, depois da derrota frente à Grécia [na final], qual era o estado de espírito no balneário e houve alguma coisa que os capitães ou Scolari tivessem dito para amenizar a situação?

JA:
O Euro 2004 foi especial, acho que foi especial para toda a gente. Para quem trabalhava em desporto e outras que não. Se calhar foi o primeiro contacto de muita gente com o futebol, de muita gente que não gostava de futebol. O evento foi em Portugal e quando deram por si estavam a apoiar a seleção e estava dentro de todo o espírito visto que passámos a primeira fase com muito sacrifício.

Perdemos com a Grécia no primeiro jogo e depois no último jogo ganhámos à Espanha e passámos a fase de grupos e acho que existiu uma magia grande que fez com a que simples pessoa que trabalha numa mercearia, ou num talho, estivesse a torcer por nós. O Scolari também tinha esse dom de ter uma experiência com um país muito grande, o Brasil, e motivar. Não é fácil motivar tanta gente a remar para o mesmo caminho e ele foi campeão do mundo. Então ele trouxe o mesmo modelo de pôr as bandeiras na janela e fez com que toda a gente acreditasse que se tratava de um Europeu especial.

Fizemos o trajeto, chegámos à final e quando os jogadores chegam à final e é uma primeira final de Portugal em termos de seleção A, inconscientemente, foi como um alívio. Estar a jogar em casa e jogar a final fez com que um dos objetivos fosse cumprido. Faltava o objetivo principal que era vencer uma competição. Na altura acho que o entusiasmo e toda a envolvência que tínhamos com o público, que queríamos agradecer, e estávamos muito distraídos com aquele ambiente e quando chegámos ao jogo, o mesmo já estava a decorrer e talvez ainda estivéssemos a pensar nos cavalos, nos aviões e foi um ambiente estranho.

Hoje já não se faz isso, a Federação de certeza que já tratou a forma desses jogos especiais serem tratados mas não havia como evitar porque o amor dos portugueses naquela altura foi tão grande que pensámos que não ia fazer mal à nossa prestação na final. Perdemos com uma Grécia que como equipa foi muito competente, uma equipa muito eficaz e o sentimento era de perda, grandíssimo. Toda a gente esteve a festejar nas ruas e ligavam-nos familiares, amigos a dizer que estiveram a festejar e nós tínhamos que nos concentrar. No último dia, que era o dia em que devíamos festejar fomos para casa tristes e a chorar. Fomos os 23 [jogadores] os únicos que não celebraram nada durante esse tempo todo mas acho que em termos de objetivo, como seleção, foi muito bom, visto que aquela geração depois fez um Mundial muito bom, na Alemanha.

Fomos às meias-finais, ficámos em quarto lugar. Havia um sentimento de perda, mas já sabíamos o que tínhamos de fazer para chegar lá e daí que hoje em dia seja muito mais fácil encarar estas grandes competições e acho que os jogadores estão muito mais preparados do que nós estávamos para jogar uma final.

10 – Foi o título que mais te custou não vencer?

JA:
Claro que sim, porque é uma final europeia e na altura jogava no Deportivo e estar na seleção foi um reconhecimento do meu trabalho. Por isso, sim, esse título ia ficar muito bem nas nossas vitrinas e ia dar reconhecimento ao que fizemos nesse Europeu que foi algo fantástico.

11 – Há alguma história da seleção em 2004 que ainda não se conheça durante esse Europeu?

JA
: Há várias histórias. Em termos do que é futebol jogado, por curiosidade, quem marcou o golo da Grécia foi Charisteas e nós tínhamos as formações táticas para as bolas paradas e quem estava com o Charisteas nas bolas paradas era o Ricardo Carvalho. E na discussão sobre se estávamos confortáveis e nós defesas demos a opinião e dissemos que o Costinha era mais alto que o Ricardo Carvalho e supostamente podiam trocar e o Costinha falou com o Ricardo e trocaram a marcação. O Costinha ficou a marcar o Charisteas e o Ricardo Carvalho ficou a marcar outro jogador. Azar dos azares o jogador que fez golo foi o Charisteas. Claro que a situação podia ter-se dado com o Ricardo Carvalho mas são aquelas decisões táticas que os jogadores à última da hora podem mudar e que podem mudar o rumo de um destino. Também podíamos ter feito golos mas é uma história que fica e se calhar não é contada porque muitas das vezes as pessoas não sabem como funciona e eu fui dos que deu a minha opinião. Se soubesse, tinha estado calado.

12 – Depois do FC Porto, foste para o Deportivo. Como é que foi a tua experiência em Espanha?

JA:
Eu mudei em termos de personalidade, como pessoa, era muito tímido. Ao ir para Espanha, para um país diferente, tinha que justificar tudo e os colegas gostavam muito de explorar o que sentia e pensava e tive muita dificuldade, por isso, mudei a minha personalidade. Passei a fazer o que me faziam, a questionar tudo e a falar sobre tudo e mudei a minha personalidade, a minha forma de ser. A maior dificuldade foi ir sozinho porque era o único português naquele ano e para me defender fiquei falador como os meus colegas.

13 – Como é que o Deportivo marca a tua carreira enquanto futebolista?

JA:
Marcou-me mais em termo de Liga dos Campeões. Nós jogámos uma meia-final contra o FC Porto em que eu fui expulso e marcou muito porque o Deportivo ganhou uma final da Taça no estádio do Real Madrid, no ano centenário do clube, venceu o campeonato, quebrou barreiras, era a segunda equipa de muita gente em Espanha e aquela meia-final da Liga dos Campeões era um feito muito grande se tivéssemos conseguido passar a eliminatória e ir para a final. Adorei jogar em Espanha. O campeonato estava muito competitivo e foram anos maravilhosos, jogar numa equipa que fora tinha sempre gente a apoiar e foi muito gratificante visto que era a equipa que toda a gente apostava para ganhar ao Real Madrid, ao Barcelona e Valencia e conseguíamos sempre fazer grandes resultados e vencer em quase todos os estádios. Ganhámos em Munique, ganhámos ao Manchester United, ou seja, era espetacular jogar num clube de dimensão mais baixa mas tinha jogadores muito bons e que faziam a diferença. O Bota de Ouro na altura em que cheguei era o Roy Makaay e tínhamos o Mauro Silva que era campeão do mundo. Estávamos muito protegidos e era muito fácil jogar na Corunha, éramos muito acarinhados.

14 – Continuas a seguir o Deportivo?

JA:
Sim. Para ser sincero é a equipa que eu mais gosto. Porque, a par do Estrela do Amadora, somos uma equipa que ninguém espera que vença os outros e eu gosto muito desse espírito. O Deportivo agora está na II Liga mas é a equipa que eu mais gosto.

15 – A tua carreira ficou marcada por uma lesão grave. Como é que essa lesão influenciou a tua carreira?

JA:
Perdi o mundial de 2006 pela lesão, fiz a qualificação toda e eu era um jogar que nunca gostava de entrar na fisioterapia, odiava e estava sempre a reclamar com os meus colegas que o faziam e dizia-lhes para sair de lá. Eu achava que era invencível até ter essa lesão porque até ali não tinha tido lesões graves nem nada impeditivo. Quando tive essa lesão grave e vi que foi uma coisa muito forte, senti-me mais humano. Eu na altura, como defesa, pensava que era o melhor defesa do mundo, pensava que era o defesa mais rápido, mais tudo e considerava-me mesmo como tal. A lesão veio expor todas as dificuldades do que é ser defesa. Já comecei a ser fintado por toda a gente, comecei a ser driblado por toda a gente e depois os últimos anos não tiveram muita piada ser defesa e ainda por cima jogar com atletas muito bons.

16 – Depois do Deportivo, estiveste na Juventus. Como é que foi a experiência em Itália?

JA:
Agora é o clube da moda, a Juventus, porque temos lá o nosso Cristiano Ronaldo. Quando eu cheguei era uma equipa que estava a retomar o caminho visto que estava na II Divisão. Tinha tido um problema por causa do “Calciopoli” e pediram um jogador para a defesa para colmatar a saída do Cannavaro, que quando a equipa desceu se foi embora para o Real Madrid. Aceitei o desafio, já estava mais limitado por causa da lesão do joelho mas acho que foi bom, depois de muitos anos na Corunha e também para querer manter o meu lugar na seleção, quis jogar numa equipa que jogava por coisas importantes. A Juventus hoje em dia ganha todos os campeonatos e nesse trajeto, aquela equipa ajudou muito. A base era muito forte, tinha jogadores campeões antes de a equipa descer de divisão, daí que era um projeto muito aliciante e concordei em ir para manter o lugar na seleção visto que já vinham jogadores muito fortes para a minha posição, o caso do Pepe e do Bruno Alves que até hoje ainda são opção para a seleção nacional.

17 – Privaste com grandes jogadores como Buffon ou Del Piero. Como foi a experiência de ter esses jogadores ao teu lado?

JA:
A surpresa é mesmo essa. É sentir que esses jogadores que só vemos como ídolos e na televisão terem um comportamento normal e corrente faz confusão. Quando me lesionei, o Buffon todos os dias quando chegava, a primeira coisa que fazia, em vez de tomar café ou o pequeno-almoço, era ir à piscina onde fazia fisioterapia e ir-me cumprimentar e isso diz muito de um grande jogador. Não tinha nenhuma necessidade, tem os seus problemas e tem os seus objetivos, e acho que as pessoas também conseguem ser simples mesmo tendo essa moral toda. No futebol falamos em moral e por isso ainda hoje em dia continua a ser um grande exemplo para os jovens, o Buffon.

18 – Depois de sair da Juventus ainda tentaste continuar a carreira?

JA:
Eu fiz uma pré-época no Málaga e ainda fui ao Notts County, que é uma equipa das divisões inferiores de Inglaterra. No Málaga tinha um acordo com presidente para ficar só que o treinador viu que eu precisava de ritmo e achou por bem que precisava de algum tempo para entrar em forma outra vez, mais em termos do joelho. Nessa fase não fiquei no Málaga, o presidente queria ficasse, o treinador achou que devia dar o lugar a outro jogador mais jovem, eu aceitei e vi que perdi o ritmo para entrar em competição e então decidi começar a tirar os cursos de treinador e vi que não ia ter continuidade. Tinha também uma proposta para ir para o Toronto, da MLS, e tudo ficou por terra porque se depois de uma lesão muito grave não há continuidade, o joelho também precisa de ser posto à prova e eu não estava em condições para ir a jogo.

19 – Quem foi o teu maior ídolo ou referência durante a tua carreira?

JA:
Acho que tive a sorte de ter referências em todos os clubes que joguei. No Estrela da Amadora tínhamos o Rebelo que jogou até aos 41 anos. Para terem uma ideia tenho 41 anos hoje e ele com 41 anos jogava comigo e tinha que correr o mesmo que eu, daí que era um dos ídolos, era um dos craques da equipa. Depois, passei para o FC Porto, tinha o Aloísio. 38 anos e fisicamente melhor que todos nós. Teve que acabar a carreira para dar a passagem a outros colegas como eu, Ricardo Carvalho, Ricardo Silva o Ricardo Costa. Depois estive no Deportivo da Corunha e tinha o Donato, com 40 anos, outro experiente, e o Naybet que também jogou no Sporting. E estes foram os meus ídolos porque tive a sorte de jogar com os mais velhos que nos ensinavam todos os truques. Para se ser defesa e jovem é preciso saber muito de liderança e eles ajudaram-me sempre a arriscar mais, e esses mais velhos souberam puxar por nós, daí que quase todos fizeram grandes carreiras.

20 – Qual foi o jogador mais difícil que defrontaste na tua carreira?

JA:
Já me perguntaram trezentas mil vezes e eu tento variar porque vou-me lembrando de alguns. Mas o que deixava os defesas com ar incrédulo era o Mário Jardel. Eu joguei contra o Jardel quando estava no Estrela da Amadora e era aquele jogador que fazia golo e nós dizíamos: “ele não fez nada de especial, fez um jogo miserável”. Nos estávamos 90 por cento do jogo ao lado dele e ele não conseguia fintar-nos só que depois nas movimentações dentro da área era rei. Fez um golo na Amadora, em que choquei com o guarda-redes, com o Tiago, que era nosso guarda-redes, a bola ficou à mercê dele e fez golo. Ou seja, era daqueles jogadores que tinha mel. Em termos de dificuldade, quando cheguei a Espanha tinha o Ronaldinho Gaúcho que estava em super-forma, era o jogador referência da altura. Mas aquele deixava os defesas incrédulos, e daí Rui Veloso cantar do “Jardel sobre os centrais”, era o Mário Jardel porque fazia o objetivo principal do jogo, o golo e sem parecer, às vezes, que estava a transpirar.

21 – Qual foi o treinador que mais te marcou?

JA:
O que mais me marcou foi o Miguel Quaresma, que era um dos adjuntos de Jorge Jesus. Porquê? Porque desde que comecei a treinar com ele, era iniciado ou juvenil, e com 15, 16 anos, ele já nos ensinava tudo o que era o profissionalismo e nós achávamos que aquele senhor estava a ser demasiado exigente, carrancudo, chato. Éramos apenas uns jovens com 15 anos e mudou a nossa vida e muitos dos nossos colegas que jogaram com ele fizeram carreiras profissionais. Temos o Filipe Martins, que agora treina o Feirense, também foi um dos que foi treinado pelo Miguel Quaresma, o Miguel, lateral-direito que jogou na seleção também foi treinado por esse senhor que conseguiu passar para nós, uma equipa simples como o Estrela da Amadora, níveis muito altos de profissionalismo. Para se ter uma ideia, a equipa de juniores ia jogar contra os séniores, do Fernando Santos, e muitas das vezes batia o pé à equipa sénior e os treinos ou terminavam ou demoravam mais tempo até que a equipa sénior marcasse golo. O Miguel Quaresma fez essa ponte e a transição e tive muito bons treinadores.

O Fernando Santos foi o meu primeiro treinador, é como se fosse um pai para mim, o Jorge Jesus é como se fosse um pai para mim, o Scolari, na seleção, também é outro mas acho que também fiz por merecer porque também era como um filho, fazia tudo o que pai queria.

22 – Entretanto, tiraste cursos para ser treinador. Já tiveste uma experiência como adjunto no Vitória de Setúbal. Como é que foi essa experiência com o Sandro Mendes?

JA:
Comecei na formação, como treinador. Tirei os vários cursos, tenho o curso UEFA PRO, o máximo, e tenho essa capacidade de ajudar os outros. Acho que nem toda a gente tem que ser um treinador principal e ser o melhor treinador do mundo. Acho que sou o melhor segundo do mundo. E o que aconteceu? Estava na formação do Belenenses e pediram-me para ir para um projeto com o Pedro Hipólito, para o Atlético, na II Liga, visto que ele tinha um castigo por algum tempo e eu tinha que ficar no banco e aceitei. A partir dali, adorei a função de segundo treinador e com o Sandro foi exatamente o mesmo. Pediu-me essa função no Vitória de Setúbal, num sítio que ele conhece muito bem, onde está confortável e só deixei [o projeto] porque nasceu a minha filha e em casa precisam de mim, se não, era para continuar. Trabalhar numa cidade como Setúbal, que adora futebol, o Vitória é um clube que tem muita história e muito carisma e com o Sandro que foi meu colega, foi muito fácil e voltava a fazer tudo outra vez.

23 – Quais são os teus grandes objetivos para o futuro?

JA:
Em termos de futebol, quero estar ligado ao treino, gosto muito do treino e adoro a ideia de segundo treinador. E adoro chatear as pessoas com comentários desportivos, visto que a opinião de quem jogou pode ser uma opinião muito válida e acha que complementa a opinião de quem estuda o fenómeno.

24 – Depois do título europeu da seleção em 2016, achas que as gerações que estão para vir têm capacidade para ganhar um campeonato do mundo?

JA:
A Liga das Nações é título muito importante. Muita gente desvaloriza e por exemplo, no que toca à escolha dos melhores treinadores do mundo, o Fernando Santos ao ter sido vencedor da Liga das Nações e não ser considerado um dos melhores treinadores achei injusto. Portugal com as pessoas certas pode prever certas situações. Mesmo que não queria, Portugal está muito perto de ganhar uma competição. Os jogadores já estão em equipas com grandes responsabilidades e competir por finais com a seleção. Quando abrirmos os olhos, estamos a festejar um título de Portugal e esperamos que o Mundial chegue, é o título mais desejado.

25 – Quando Portugal venceu o Euro 2016, a geração de 2004 sentiu-se vingada?

JA:
Naquele jogo estava no estádio, a convite da Federação, e ao meu lado estava a Cecília Carmo e vimos a substituição do Fernando Santos [a saída de Renato Sanches por Éder], olhámos e dissemos: “é agora, não é?”. E o Éder entrou e marcou. Foi vingança. Vingança em termos de Portugal já merecer ter nas vitrinas um título europeu. Mas o facto de ser a primeira vez em França, num país onde temos muitos emigrantes e que toda a história faz com que seja um sítio especial para festejar, não me importo nada de ter perdido o Euro 2004 para que esse sentimento dos portugueses tenha sido especial e esta geração merecia porque foi a mais eficaz. Uma seleção pragmática, com um treinador que na sua vida tem um trajeto de sempre menos para mais. Estava tudo lá e com a pessoa certa a levantar a taça, acho que foi muito merecido.

26 – Há cada vez mais episódios de racismo no futebol. Como é que achas que as instâncias do futebol estão a lidar com este problema?

JA:
As entidades estão a lidar bem, talvez existam outros problemas. Num mundo que é uma aldeia global, acho que é mais falta de carácter e tentar diminuir outra pessoa é uma estupidez. Quando uma pessoa me chateia por um motivo que considera fora do normal acho que tem falta de carácter, porque para mim, a palavra racismo é muito forte. Não o sinto, porque com que o trajeto da minha vida e também dos meus pais é um trajeto muito bonito, é um trajeto de sucesso. Eles vieram de Cabo Verde para aqui para trabalhar, são pessoas bem-sucedidas, os filhos também, ou seja, Portugal deu-nos tanta coisa boa e sendo jogador de futebol eu senti o contrário: senti agradecimento a dobrar. Tenho essa sorte. Agora, é mais falta de carácter e perdoem-me a expressão, é “estupidez” do que racismo em si.

27 – Como comentador de televisão, perante um painel agressivo, continuas a jogar à defesa?

JA:
Se alguém, num painel em que estamos a falar de futebol, for agressivo para mim e já tive situações na RTP, em que tentei fazer o contraponto. A pessoa está a ser agressiva para mim, eu penso porque está a ser agressiva e tentar desmascarar um pouco para a pessoa ficar mal vista. É engraçado.

28 – A defesa foi mais difícil no futebol ou é mais difícil na televisão?

JA:
Na televisão é mais difícil, porque basta uma palavra fora do contexto e toda a gente pode tirar, isolar e uma pessoa fica marcada. No futebol é tudo mais fácil, porque todos os dias há jogos e as pessoas vão esquecendo e muita gente já não se lembra da minha geração, do que fez, do que não fez. Em termos de televisão manter uma imagem limpa não é fácil.

29 – Tendo em conta as táticas de hoje mudavas alguma coisa na tua vida profissional?

JA:
Mudava. Simplesmente não ia a jogo quando achasse que não estava a 100 por cento em condições. Lesionei-me porque tinha uma tendinite aguda e sempre desvalorizei e os médicos também e no intervalo em que tive rutura total do ligamento, senti uma dor forte e se fosse hoje em dia, retirava-me e deixava os outros jogar. Eu não gostava que outro colega fizesse a minha função porque achava que ia dar espaço para ele poder fazer melhor, por isso nunca quis que ninguém ficasse com o meu lugar mas em termos de saúde não é bom porque com a personalidade que eu tinha, ia para campo prejudicar ainda mais as lesões que tinha e acho que mudava isso, podia proteger-me mais.

30 – Lembras-te do primeiro conselho que te deram quando entraste para o mundo do futebol?

JA:
O meu pai jogou futebol e o único conselho que ele me deu foi “Jorge, se tu fizeres simplesmente o que o treinador te disser, nunca vais chegar ao objetivo que tu queres”. Ou seja, como defesa sempre fui um pouco mais audaz, pegava na bola e fazia mais qualquer coisa. Em termos de comportamento, o meu avô deu um conselho ao meu pai quando veio para Portugal sozinho e o meu pai replicou-o para mim: “Jorge, atenção, quem se junta com o porco, come farelo”, ou seja, se te juntas às pessoas erradas podes ter um destino infeliz. E foram os dois conselhos no futebol que me ajudaram a ter uma noção do que é a vida.

31 – É esse o conselho que dás a quem entra para o futebol profissional?

JA:
Esse sim, de estar com as pessoas certas, e outro é simplesmente aproveitar ao máximo, porque passa muito rápido.