Veja a entrevista completa ao canoísta José Ramalho
RTP Notícias: Gostava de conversar sobre o último Europeu de Maratonas. A que soube a conquista destas três medalhas que no fundo foram um pódio completo?
José Ramalho: Sem dúvida. Conquistar três medalhas em três possíveis, nas três provas que preenchem o campeonato da Europa, que é o Short Race, o K1 Maratona e depois o K2. Conquistar uma medalha já é muito bom mas conquistar três é extraordinário. Tendo em conta o palmarés que tenho, e passados tantos anos a conquistar medalhas, claro que é sempre muito bom conquistar mais um título europeu, mais uma medalha de prata no K1 na Maratona e uma medalha de bronze na Short Race. É muito positivo e são bons indicadores para os Jogos Mundiais e para o próximo campeonato do mundo que será em setembro.
Conquistou a medalha de ouro com o Fernando Pimenta em K2. Fale-me por favor dessa prova, não só como ela decorreu, mas também como foi compartilhar essa medalha com o Fernando Pimenta?
Foi uma prova de K2. Seguimos mais ou menos o mesmo tipo de prova com que nos sagrámos tricampeões do mundo. Temos três títulos seguidos de campeões do mundo de maratona: em 2022, 2023 e 2024. O K2 é sempre uma prova muito tática porque os ritmos alternam muito, são grupos grandes, e a disputa pelas ondas é grande. Para as pessoas perceberem, um bocado como no ciclismo, quem vai no maior grupo tenta ir na melhor roda e na canoagem não é a roda mas é a onda e há sempre a parte muito tática da competição em que nós precisamos de estar extremamente atentos.
Somando a isso há portagens. A prova de maratona são 30 quilómetros com sete portagens. A portagem significa que é um percurso que nós fazemos e saímos do barco e corremos cerca de 100 metros. Ao longo dos anos foram-se alterando os percursos das provas até chegarmos a este percurso final que são oito voltas com sete portagens. É uma forma de aproximar os atletas do público e tornar um pouquinho mais espetacular. O facto de sairmos a correr, passarmos em frente às bancada, isso acaba por trazer muita incerteza e espetacularidade à competição visto que a mil metros da meta temos a última portagem, o que realmente traz bastante indecisão e muito mais emoção a quem compete mas também a quem vê. Acho que aquelas imagens espetaculares em Ponte de Lima são algo que mostra que a prova está a avançar para o sítio certo.
E as outras duas provas? Como é que decorreram e como é que foi chegar às outras duas medalhas?
A Short Race é uma prova bastante curta para quem faz maratonas. É uma prova de 3400 metros. São duas voltas com duas portagens e é uma prova bastante agressiva em termos físicos porque fazer uma largada ao máximo com uma viragem passados 400 metros da largada e depois uma portagem a mil metros da largada, logo a seguir, mais outra portagem e terminar com 13 minutos de competição bastante intensa. Foi disputada até ao fim com três atletas ao sprint final e consegui a medalha de bronze, o Fernando conseguiu o ouro, e o atleta inglês acabou por ficar em segundo lugar.
Depois no K1, no sábado, que é uma prova de maratona, é igualmente uma prova de 30 quilómetros e também foi decidida no final ao sprint com uma diferença de menos de um segundo entre mim e o atleta inglês. No entanto, são provas extremamente competitivas com vários atletas a lutar pelo título. Felizmente consegui uma medalha de prata, noutros anos já consegui oito títulos de campeão da Europa de K1, e pela primeira vez, consegui com o Fernando [Pimenta] o primeiro título de K2, o que me leva a nove títulos de campeão da Europa e isso é um motivo de bastante orgulho e é uma prova do bom trabalho que tenho vindo a realizar ao longo de tantos anos.
A minha próxima pergunta é sobre a preparação que se faz para chegar a um Europeu de Maratonas e conseguir conquistar os títulos que se conquistou.
Há um percurso e há um trabalho diário que começa muito cedo. Uma época não se prepara com um, dois ou três meses. Mal acaba o campeonato do mundo, que normalmente é em setembro, temos cerca de 15 dias para descansar, ir de férias, recuperar um pouco a energia e depois voltamos ao trabalho. Estamos a falar de muitos meses de preparação, de muito trabalho, com treinos bastantes duros, com muitas horas por dia na água a remar, no ginásio, na corrida, na natação e isto é o nosso dia-a-dia.
É quase como entrar às oito da manhã e sair às seis da tarde do trabalho e isso faz parte da preparação de um atleta. Já vão muitos anos, tenho 42 anos e acho que ainda tenho uns anos para continuar. A realidade é que sinto-me bastante bem, não sinto perda nenhuma com os anos a passar e vou aproveitar isso enquanto puder.
É preciso estar-se muito bem preparado para haver essa linha contínua não só a competir mas também a ganhar?
Sim, por vezes os atletas conseguem ganhar uma vez e depois, por vezes, é difícil voltar a conquistar medalhas e esta continuidade, este trabalho longitudinal, com medalhas, é prova do bom trabalho e do bom acompanhamento que também tenho porque isto não é trabalho de uma pessoa só. É o trabalho de uma equipa que está sempre comigo em que vamos mudando aquilo que é necessário mudar para continuar lá em cima e são muitos anos em que tivemos que alterar muito, corrigir muita coisa.
Mesmo a própria ciência e o trabalho no desporto evoluiu muito e por isso começamos a ver atletas mais velhos a terem o mesmo rendimento de quando tinham 30 anos, 20 e poucos anos, e isso é prova do bom trabalho, do conhecimento, do empenho de toda a gente que trabalha com atletas e que trabalham comigo, neste caso, de forma a poder chegar a esta idade e estar a 100 por cento, a um nível competitivo alto.
Foto: José Ramalho e Fernando Pimenta festejam conquista da medalha de ouro em K2 - Hugo Delgado - Lusa
É sempre o expoente máximo. É sempre extraordinário porque sempre que há uma prova, uma competição em Portugal, de canoagem, há muita gente que vem ver, que nos apoia. Aquela ponte em Ponte de Lima, aquelas bancadas, fica tudo cheio, a abarrotar e as pessoas querem ficar até ao fim para nos ver a receber as medalhas e depois terem a oportunidade cantar o hino e cantar o hino com tantas vozes é totalmente diferente de quando estamos lá fora.
Claro, cantamos o hino, temos muito orgulho de ver a nossa bandeira subir mas fazer isso e partilhar isso com as pessoas de que mais gostamos, com as pessoas que se dão ao trabalho de nos ir ver, que vêm de outras cidades para nos verem competir e depois poderem cantar connosco é algo que qualquer atleta não se esquece e que trabalha também para isso, para poder partilhar com as suas famílias, com os seus amigos e todos aqueles que nos apoiam. Podermos partilhar esses momentos é um motivo de grande orgulho para nós.
Claro, cantamos o hino, temos muito orgulho de ver a nossa bandeira subir mas fazer isso e partilhar isso com as pessoas de que mais gostamos, com as pessoas que se dão ao trabalho de nos ir ver, que vêm de outras cidades para nos verem competir e depois poderem cantar connosco é algo que qualquer atleta não se esquece e que trabalha também para isso, para poder partilhar com as suas famílias, com os seus amigos e todos aqueles que nos apoiam. Podermos partilhar esses momentos é um motivo de grande orgulho para nós.
Têm noção se a canoagem, como modalidade em Portugal, tem cada vez mais fãs?
A canoagem tem ao longo dos anos vindo a trazer muitos resultados e muitas medalhas. Por vezes as pessoas pensam que isto se torna fácil e usual que um canoísta traga medalhas mas as coisas não são assim. Quando não trazemos as coisas não correm assim tão bem mas a verdade é que temos trazido muitas medalhas para Portugal e claro, isso é um acrescento ao acompanhamento das pessoas, tanto nas redes sociais como nestas competições que acontecem em Portugal e acabam por aparecer mais, comparecer mais e dar mais o seu apoio.
Lá fora, os emigrantes portugueses, quando vêem que há uma bandeira de Portugal, vão ver o que se passa. Às vezes não têm tanto conhecimento do que é a modalidade e depois acabam por nos acompanhar naqueles dias em que estamos nesses países e acabam por nos acompanhar e dar o seu apoio e o seu contributo. Há sempre um português em qualquer lado do mundo.
Como é que olha para a canoagem e acha que está a tornar-se numa das grandes bandeiras de Portugal em termos de modalidade extra-futebol?
É uma modalidade que sem dúvida é uma das bandeiras. Creio que é a modalidade que mais medalhas traz ao longo dos anos nestas últimas décadas. É que a traz mais medalhas internacionais, em campeonatos da Europa e campeonatos do mundo. É sem dúvida a modalidade com mais medalhas. Por vezes, carece um pouco de financiamento. Estes tipos de desportos, que não são de massa, acabam por ter bastantes dificuldades. Vejamos o que acontece com o judo. A Federação de Judo está neste momento numa situação bastante crítica, coisa que se passou com a nossa modalidade em 1996, 1997. Também passou exatamente pelo mesmo processo. O remo, há coisa de 15 anos, foi igual.
É necessário dar valências aos nossos atletas novos, aos cadetes, estamos a falar de jovens com 14, 15 anos, e isso tem um custo elevadíssimo para as federações. No caso da canoagem temos um centro de alto rendimento em Montemor que acaba por precisar de bastante dinheiro para poder colocar todas aquelas modalidades que fazem parte da canoagem, do slalom. Todas elas têm equipas grandes e os nossos miúdos mais novos também precisam de estar em estágio, encontrarem-se com adversários para poderem fazer treino em conjunto e isso faz com que seja um consumo enorme de dinheiro e despesa para uma federação e acabam por padecer um pouco pela falta de verbas.
Esperemos que estas medalhas tragam mais visibilidade à modalidade e mais apoios, tanto privado como estatal, porque os jovens praticarem desporto é essencial para uma sociedade crescer com saúde.
E esse é um apelo que deixa aos jovens?
Sim, sem dúvida. Eu sou pai e fico bastante contente quando vejo a minha filha a praticar desporto e a treinar todos os dias. Ela não faz canoagem, faz ballet. É uma coisa que me deixa tranquilo porque os valores do desporto são únicos e traz a estes jovens bastante disciplina, bastante foco e possam depois no futuro passam isso para o seu trabalho, para a sua vida familiar e é uma mais-valia para os jovens praticar desporto e espero que haja ainda mais a praticar.
O que podemos esperar do José [Ramalho] para o futuro?
O futuro mais próximo será nos Jogos Mundiais. É uma ambição que tenho. Competi em 2021 nos Estados Unidos. As provas não correram assim muito bem, embora tenha conseguido uma medalha de bronze. Fiquei um bocado com um amargo de boca e decidi que um dos objetivos seria em 2025, na China, estar nos Jogos Mundiais. É para isso que estou a trabalhar, vou lutar por medalhas o máximo que puder.
Neste momento, numa carreira que já vai longa, todas as medalhas que vêm são sempre um extra daquilo que alguma vez imaginei. Nunca me imaginei a remar para lá dos 40 anos, já vou com 42 e ainda conquisto medalhas, todas elas são sempre um extra porque não me via há 15 anos a continuar a remar com esta idade e muito menos a ganhar medalhas. É um bónus que todos os anos recebo sempre que conquisto medalhas para Portugal. E isso acaba por me trazer alguma tranquilidade.
Tenho 17 em campeonatos da Europa e outras quase tantas em campeonatos do mundo e é com bastante tranquilidade que agora vejo as próximas competições. Antigamente ficava mais nervoso, mais ansioso mas isso já não se passa porque sei que tenho uma missão não totalmente cumprida mas com um background muito grande de resultados e isso dá-me bastante tranquilidade sempre que vou competir.
Depois de todos estes títulos, que legado é que o José Ramalho vai deixar na canoagem e no desporto português?
O melhor legado que qualquer atleta pode deixar é conseguir passar esta mensagem aos atletas mais novos que tentam ser campeões e conquistarem medalhas que é possível e que olhem para nós como atletas que conseguiram. E eles ao viverem isso de perto sentem que realmente é possível de acontecer. Lembro-me de quando era mais novo, a minha geração perdeu-se um bocado, por causa das dificuldades federativas.
Por volta de 2003, 2004 quando comecei a ter contacto com atletas de fora que realmente tinham resultados extraordinários, comecei a perceber que eram pessoas normais mas que tinham exatamente as mesmas dificuldades e ao treinar com eles percebia que isto era uma questão de resiliência, de trabalho, de dedicação e é um trabalho que não tem fim. Nós podemos ir melhorando ao longo dos anos, não é um trabalho que se faça num mês nem num ano, é um trabalho de longevidade e ao perceber isso noutros atletas, eu consegui fazer a minha carreira e espero que haja e tenho a certeza que há muitos sub-23 com medalhas, coisa impensável há uns anos atrás.
Espero que o meu legado também lhes traga segurança e certeza de que um dia também podem chegar lá e que a conquista de medalhas passe para outros atletas mais novos e que possam dar continuidade a este trabalho.