Argélia. Eleições presidenciais marcadas por abstenção e manifestações

por Graça Andrade Ramos - RTP
Milhares de eleitores recusaram ir às urnas nas eleições presidenciais da Argélia de 12 de dezembro de 2019 Reuters

Milhares de argelinos saíram às ruas esta quinta-feira, dia de eleições presidenciais. Em vez de ir votar, preferiram juntar-se em marchas de protesto e de apelo ao boicote, que se organizaram em todo o país. O movimento, Harak, de contestação, não desistiu.

Os resultados preliminares da votação poderão ser conhecidos a partir das 23h00, mas os finais só deverão saber-se sexta-feira de manhã. A abstenção entre os 24 milhões e 500 mil eleitores terá sido esmagadora.

Até às 14h00 locais, quatro horas antes do encerramento das urnas, números oficiais apontavam uma participação de 20 por cento. Três horas depois, esta rondava os 33 por cento, de acordo com a autoridade eleitoral independente da Argélia.

Numa assembleia de voto havia 12 votos às 17h00, num universo de 217 eleitores.


Espera-se que,
à semelhança de outras eleições em anos anteriores [em que a abstenção apresentava às mesmas horas valores semelhantes], os números oficiais da participação rondem os 50 por cento dos eleitores. As eleições presidenciais argelinas decorreram sem a presença de observadores internacionais.

Na capital, Argel, houve quem votasse, em assembleias de voto praticamente desertas, vigiadas por patrulhas da polícia, enquanto um helicóptero sobrevoava o centro.

"O país entrou numa fase crucial", justificou Aziz Djibali, de 56 anos, que foi votar perto da residência oficial do primeiro-ministro, pouco após as 07h00, ainda a cidade estava quase deserta.

"Já é altura de os argelinos fazerem ouvir as suas opiniões de forma pacífica", considerou.

Horas depois e a poucos metros dali, agentes de segurança carregaram, para impedir à força de bastonada o avanço de um protesto contra as eleições. Recuaram quando uma onda de manifestantes se juntou ao Harak.

"Somos livres!" gritou um homem de 25 anos quando um polícia tentou prendê-lo.

Reformas antes de eleições
Djamel Faradji, um desempregado de 27 anos e um dos milhares de argelinos que há meses enchem de bandeiras à sexta-feira as principais avenidas da capital, garantiu que os manifestantes são na sua maioria pacíficos e apontou a flor que trouxe na lapela em sinal de não violência.

A sua bandeira ostentava a frase sou argelino e não irei votar contra o meu país. Noutras bandeiras, agitadas pela multidão compacta, lia-se hoje não se vota, independência, Não se vota com a máfia.

Majid Belghout, um arquiteto de 54 anos, desvalorizou as eleições como "uma tentativa da velha guarda se regenerar".

"Uma eleição livre só pode ter lugar na Argélia depois de um processo democrático. Estamos apenas no início desse processo", explicou, repetindo a exigência do Harak por reformas profundas do sistema político, antes de qualquer escrutínio.

"Não é altura para votar mas é o momento para passar a um debate nacional democrático e independente. E a única forma de conseguir um consenso sobre o futuro da Argélia", afirma Belghout.

Já outros não votam porque isso sempre foi inútil. "Para que serve ir votar?", questionou Salim Bairi, um professor primário entrevistado num café para a agência Reuters.

E Kamel Moumni, de 36 anos, encontrou tempo para ir ao dentista mas não para ir à sua assembleia de voto. Há anos que não vota e, garante, "não vou mudar de ideias hoje".
Charada
O escrutínio desta quinta-feira já tinha estado marcado, primeiro para abril e depois para maio.

O Governo de transição apoiado pelas forças armadas e chefiado pelo homem forte do país, o tenente-general Ahmed Gaed Salah, insistiu na sua realização como a única forma de por fim ao impasse entre manifestantes e Governo que paralisa o país há dez meses.

O Harak explodiu em fevereiro, quando Abdelaziz Bouteflika, Presidente desde 1999, pretendeu candidatar-se a um novo mandato, apesar de há meses não ser visto e de, aos 82 anos, a sua saúde estar extremamente frágil.

Bouteflika acabou por renunciar, sob pressão de Salah, que assumiu a condução do país e prometeu paz e novas eleições. Os manifestantes exigiam na altura que, além de Bouteflika, todos os que sustentaram e se serviram do sistema instituído se afastassem do poder.

Apesar da contestação e da detenção de dezenas de altos funcionários, incluindo antigos primeiros-ministros, ministros e empresários, acusados de corrupção, a elite tem-se mantido nos lugares chave do país. Os cinco candidatos à presidência são todos oriundos do sistema de poder, le Pouvoir, como é conhecido.

Abdelmadjid Tebboune e Ali Benflis foram ambos primeiros-ministros, Azzedddine Mihoubi foi ministro da Cultura, Abdelkader Bengrine chefiou a pasta do Turismo e Abdelaziz Belaid, é um antigo membro do comité central do FLN, o partido que governa a Argélia há dezenas de anos.

Para a população, estas eleições presidenciais não passam por isso de uma charada.
Votos pelo ar
Vídeos publicados nas redes sociais mostraram marchas em vez de filas de eleitores, em Oran, Constatina e em diversas outras localidades.


Os protestos foram quase todos pacíficos e ordeiros, mas em Bouira, os manifestantes incendiaram a sede local da autoridade eleitoral independente.


E em Bejaia, na região de Kabylie, os manifestantes apoderaram-se de urnas e destruíram-nas, lançando os boletins de voto ao ar.


Na cidade de Haizer, um antigo bastião da resistência anti-colonialista, as ruas encheram-se de pessoas a entoar "não votamos" e as assembleias eleitorais nem chegaram a abrir.

"O governo é corrupto. Tem de ser expurgado de uma maneira ou de outra", explica Aissa Ait Mohand, de 22 anos, filho de um agricultor desempregado, afirmando que os jovens da sua área consideram as eleições presidenciais "um truque" das autoridades para se manterem no poder.

Haizer foi palco de vários combates entre as forças armadas argelinas e grupos islamitas, há mais de 20 anos, que fez 200 mil mortos. Alguns dos revoltosos depuseram armas e acabaram por colaborar com as autoridades locais. Yahya, um deles, apoia o escrutínio.

"Costumávamos cantar por um estado islâmico sem eleições, em 1990. Acabamos com uma guerra civil", referiu à Reuters.

Os meses que antecederam as eleições foram marcados pelo Harak e por detenções arbitrárias de manifestantes comuns, de jornalistas, de advogados e de estudantes universitários, as quais motivaram um protesto oficial da União Europeia.

A semana passada, dois ex-altos responsáveis do executivo de Bouteflika começaram a ser julgados por corrupção, naquilo que o Governo de transição espera seja olhado como um sinal que as exigências dos manifestantes estão a ser respeitadas.

A Argélia, no norte do continente africano, é um dos principais fornecedores de gás natural da Europa e tem 40 milhões de habitantes.
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