Jovens deviam ser mais ouvidos na elaboração de planos desportivos, alertam os especialistas

por Lusa

As crianças e jovens em idade escolar deviam ser mais ouvidas e tidas em conta na elaboração de estratégias e planos relativos à atividade física e desportiva, alertaram à Lusa especialistas em desporto escolar.

José Cordovil, presidente da Comissão Consultiva de Educação Física e Desporto na Escola do Comité Olímpico de Portugal (COP), destaca a possibilidade de serem feitos “estudos sérios sobre a opinião dos jovens” como “a questão fundamental que o desporto escolar não tem feito”.

“Na conceção do modelo do desporto escolar, como na questão teórica sobre o que é o desporto escolar, gostaria de um estudo sério sobre o que pensam os jovens atuais, e quem passou recentemente [pelo projeto], para onde deve evoluir”, comenta.

Se Cordovil considera que os adultos tendem “a achar que sabem tudo”, também Carlos Neto, professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana (FMH), lembra que aos mais pequenos “é tudo imposto”. “As crianças não são ouvidas”, sentencia.

No Dia Europeu do Desporto na Escola e dois meses depois de ter sido publicado o Programa Estratégico do Desporto Escolar 2021-2025, José Cordovil destaca os mais novos como “aqueles que são os destinatários” das políticas de desporto escolar e aqueles que “no futuro podem beneficiar efetivamente de adquirir hábitos e prática de atividade física para toda a vida”.

Esse hábito que é apreendido desde cedo e integrado na vida quotidiana tem também “reflexos económicos e sociais”, na vida de cada um e na sociedade em geral.

“A questão da cidadania também no desporto é fundamental. Uma das grandes valências do desporto, para além do sucesso e das medalhas, é a transmissão de valores”, comenta.

O professor elenca algumas dessas aprendizagens, como “a capacidade de suportar as dificuldades e problemas, trabalhar em equipa, no fundo conseguir fixar objetivos que se pretendem atingir, mesmo que demorem algum tempo a ser concretizados”.

É importante conceber o desporto como algo que “não cria só atletas de alto nível, mas provoca uma consciência de praticar atividade física ao longo da vida, de crianças a idosos”, até pela necessidade de pensar no envelhecimento da população, refere Carlos Neto, por uma questão de “prevenção da saúde física e social”.

“Está aqui em causa a tomada de consciência de que temos de reinventar o conceito de atividade física e desporto. E também temos de ter melhor consciência de como as crianças vivem aprisionadas, a trabalhar mais do que os pais. No primeiro ciclo, há crianças com 50 horas semanais, se somarmos as atividades curriculares, atividades de apoio à família e atividades de complemento às curriculares”, destaca.

O antigo presidente da FMH pede ainda que se possa “reinventar um futuro que seja mais interativo e não tão egocêntrico, vivido à pressa”, de pais a educadores até às escolas e aos próprios jovens.

Com muitos professores e treinadores a viver “situações limite, sem um planeamento adequado para o desenvolvimento humano”, as crianças crescem “numa sociedade consumista e de competição a qualquer preço, baseada no produto, no sucesso”.

“As coisas têm tempo para serem adquiridas. As aprendizagens não se fazem à pressa, com automatismos rígidos, mas sim com uma política desportiva em aquisições que os jovens fazem de forma plástica. Para que haja boa tomada de decisão, resiliência, adaptação”, alerta.

Sem ouvir os mais novos, há também o risco de “ao proteger demasiado” as crianças poder-se “desproteger”, retirando-lhes o confronto com “o tédio e a frustração”, que os coloca “perante a resolução de problemas, confronto com adversidades, criatividade” e outros valores que levam para a vida, e para outras áreas.

“Um dos maiores dramas do que é hoje a diminuição de importância dada às crianças ativas. Porque incomodam. É uma sociedade muito quieta, muito sossegada, muito sentada, cada vez mais sedentária, com maior percentagem de inatividade física, e isso cria problemas enormes, de doenças não só físicas, [...] mas também mentais”, afirma Carlos Neto.

O professor catedrático aponta estes problemas como o “resultado de uma falta de consciência de que as crianças precisam de brincar muito e ser ativas”, lembrando que a judoca Telma Monteiro, por exemplo, já comentou a importância de brincar na sua evolução desportiva.

“Lutar por objetivos é sempre um processo de equilíbrio entre ser uma criança e um adulto. Precisamos das duas coisas. Precisamos de ser a criança que sonha sem limites e que procura ser feliz sem medos e o adulto que conhece o processo para realizar os sonhos”, escreveu em 2019 no Expresso Telma Monteiro, medalha de bronze no Rio2016 e hexacampeã europeia.

Desporto precisa de melhor urbanismo para florescer nas crianças – especialista
Melhores práticas ambientais e de urbanismo nas cidades são precisas para que crianças e jovens possam brincar e fruir da atividade física e desportiva, realçou o especialista Carlos Neto à Lusa.

Parte de uma campanha do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) ligada ao desporto para todos, “que engloba cidades ativas, famílias ativas e escolas ativas”, o professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana (FMH) defende que é precisa “uma visão ecológica de como se deve promover uma estratégia de desenvolvimento desportivo”, a começar nos mais novos.

O ultrapassar de problemas antigos, relacionados com o sedentarismo, inatividade física e obesidade infantil, que colocam Portugal entre o topo dos países com maiores taxas destes indicadores, é uma urgência.

A viver num planeta “em grande transição digital”, mas também “numa transição verde”, o próprio setor do desporto precisa “de sustentabilidade, consciência ambiental, para que o corpo em movimento faça parte dessa estratégia”.

O Programa Estratégico do Desporto Escolar 2021-2025 assenta em seis eixos estratégicos, um deles o “desporto verde e sustentável”, de medidas de aproximação ao mar e rio, por modalidades náuticas, e de estímulo do uso da bicicleta para desporto e para deslocações.

Carlos Neto lembrou um recente discurso do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, no qual ele destaca o desporto como tendo “um papel essencial na consciência dos grandes problemas da Humanidade”, como as alterações climáticas.

Dentro do desporto escolar, este tem de “ser revalorizado dentro da escola, da creche ao secundário”, focando-se no corpo em movimento e na sua articulação na “grande relação entre escola, família e comunidade”, com este último pilar a englobar os clubes, por um lado, e as autarquias, por outro.

“Os municípios também são responsáveis para que crianças e jovens possam fazer desporto regular e intencional. [...] É preciso ter cidades com condições para que as crianças possam brincar, as famílias sejam convidadas a vir para a rua, com melhor relação de tempo entre escola e família, com mais cultura lúdica e desportiva”, disse.

Essa revalorização permite colocar o corpo, e o movimento, entre as prioridades, para uma aprendizagem básica que levará, depois, “ao desporto de formação e ao desporto de alto nível”.

Um “urbanismo sem planeamento adequado para que haja uma vida saudável”, para todos, coloca o desporto dependente de “políticas públicas” que tornem o espaço mais acessível aos mais novos.

“Hoje, as crianças não saltam, correm, sobem às árvores, andam de bicicleta na rua”, lamenta.

No campo das políticas públicas, Neto considera Portugal “muito atrasado em relação a muitos países”, não só porque há muitas famílias sem dinheiro suficiente para pagar os custos de uma carreira formativa federada, mas também pela carga horária, com crianças a viver “um inferno, a começar às oito da manhã na escola e acabar às 23:00 no clube”.

“Havendo discussão nacional a nível da descentralização de competências do Estado para municípios, é importante interrogar o papel dos municípios, e eu penso que é muito [grande]”, frisa.

Para o especialista, a “falta de consciência da importância do desporto no desenvolvimento social, na vida”, leva a que as cidades sejam planeadas sem ter os mais novos, e a atividade física, em conta.

A transição digital, como a robótica e avanços noutras áreas tecnológicas, vai transformar “o emprego, o mundo, a sociedade, e inclusivamente o corpo”, e fará o mesmo pelo desporto, dos “problemas éticos” à forma como funciona.

Aí, é necessária uma melhor “articulação de políticas públicas, com melhor planeamento urbano” que leve a “melhor qualidade de vida”, também decorrente de uma prática desportiva que vá “de crianças a idosos”, para um grupo alargado de pessoas, não só “para atletas de alto nível”.

“Temos de olhar para a arquitetura e planeamento das cidades, diminuir os automóveis e aumentar o tempo de caminhar a pé, de andar de bicicleta, de cidades mais verdes, mais amigas das crianças, ter escolas com espaço exterior mais adequado”, comenta.

Para o antigo presidente da FMH, “depois desta pandemia já era tempo de se ter consciência de que as crianças quando vão para o recreio não é só para despender energias”, tendo de ser desafiante para estimular a atividade física e, depois do aperfeiçoamento e especialização, a prática desportiva, seja no desporto escolar seja nos clubes.

“Temos uma cidade centrada numa visão adulta, e pouco centrada no desenvolvimento adequado para as crianças e jovens”, atira.


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