Roglic: o Giro depois da Vuelta

por Lusa
Reuters

O ciclista esloveno Primoz Roglic (Jumbo-Visma) exorcizou os ‘fantasmas’ que traz consigo da Volta a França e acertou contas com o destino e com a Volta a Itália, juntando hoje a ‘corsa rosa’ ao ‘tri’ da Vuelta.

Aos 33 anos e 211 dias, o ciclista esloveno deixou para trás uma relação atribulada com o Giro, em que já tinha sido terceiro em 2019, e venceu a quarta grande Volta da carreira, depois de três Vueltas (2019 a 2021).

Fê-lo de uma forma que tem um nome mais ou menos sério: ‘Roglification’, ou ‘roglificação’, em tradução livre, o ato de ganhar uma corrida no último momento possível, de forma dramática, como fez tantas vezes.

E o triunfo na 20.ª etapa, numa ‘cronoescalada’ em que até teve um problema mecânico e mesmo assim ‘trucidou’ o britânico Geraint Thomas (INEOS), segundo, foi exatamente isso, num momento de libertação de demónios do passado do esloveno, que guardou o jogo durante todo o Giro até ‘atacar’ no momento decisivo.

O chefe de fila da Jumbo-Visma chegou, inclusive, a brincar com estar com sintomas de covid-19 junto de Thomas, numa primeira semana que, depois, veio a trazer inúmeros positivos ao novo coronavírus que afastaram vários corredores, desde logo o grande favorito e então líder da geral, o belga Remco Evenepoel (Soudal Quick-Step).

Em 2020, era ele que parecia destinado a vencer a Volta a França, mas foi batido por um compatriota muito mais novo, Tadej Pogacar, precisamente numa ‘cronoescalada’ e na 20.ª etapa.

Esse resultado, um dos mais dramáticos em grandes Voltas em muitos anos, tem-no perseguido desde então, mesmo com um ‘tri’ na Volta a Espanha, um título olímpico no contrarrelógio e numerosas outras vitórias.

Posto de forma simples, não há muito que lhe falte ganhar, tirando o Tour, tendo já vencido quase tudo o que são corridas por etapas ao mais alto nível, como o Tirreno-Adriático, a Volta à Catalunha, o Critério do Dauphiné, a Volta à Romandia, a Volta ao País Basco, o Paris-Nice, a Volta ao Algarve e muitas outras.

Tem um título olímpico e dá cartas também nas clássicas, com uma Liège-Bastogne-Liège (2020) no currículo, bem como a Milão-Turim e outras provas importantes.

Faltava-lhe o Giro, onde também passou mal, e este ano acertou contas com o destino num local importante para si, o Monte Lussari, que, além de ser perto da fronteira com a Eslovénia, foi também palco de muitos saltos de esqui, antes de uma lesão grave o levar a trocar de desporto, em 2007.

Pai de dois filhos, deu origem a uma música famosa com o seu nome, criada pelo ciclista e criador Bas Tietema, festeja com um gesto típico dos saltos de esqui (o movimento Telemark), e criou uma fundação de cariz social, que em 2022 apoiou ciclistas ucranianos que deixaram aquele país após a invasão da Rússia.

Completou o triplete de grandes Voltas para a Eslovénia, por quem foi o primeiro a vencer nas três, juntando estes quatro triunfos aos dois Tour de Pogacar, e fê-lo com uma equipa composta, tirando o norte-americano e fiel escudeiro Sepp Kuss, com segundas linhas.

Entre a covid-19 e lesões, a Jumbo-Visma acabou dizimada antes do arranque da prova e obrigou a um alinhamento alternativo no apoio ao esloveno, que parece desfrutar mais quando tem de recuperar de adversidades.

Ganhou um ‘Monumento’ depois de perder aquele Tour, além da Vuelta, terreno em que mostrou sempre grande nível e conseguiu a maior parte das 17 vitórias em grandes Voltas que possui.

No sábado, depois de confirmada a vitória, não conteve as lágrimas e, cá fora, também os companheiros de equipa, muitos deles bem mais jovens, se emocionaram com novo triunfo redentor, mesmo perante um ‘senhor’ Geraint Thomas, que os felicitou a todos e cumprimentou o campeão.

“Que batalha, não?”, respondeu ‘Rogla’, na rede social Twitter, a uma publicação elogiosa do campeão do Tour de 2018, que acabou em segundo à frente do português João Almeida (UAE Emirates), terceiro.

Com o dinamarquês Jonas Vingegaard como vigente campeão da Volta a França, o espaço de Primoz Roglic para chegar ao ‘hat-trick’ mais pretendido do ciclismo mundial parece mais apertado, mas o ciclista, antigo estudante de Economia, é perito nisto mesmo – trocar as voltas a quem acha ter um desfecho já garantido.

Nasceu nos arredores de Trbovlje, nona maior cidade da Eslovénia, destacou-se nos saltos de esqui, chegou a ser campeão do mundo júnior por equipas, e em 2012 virou-se para o ciclismo de estrada, mesmo começando tarde, entrando aos 23 anos na Adria-Mobil, para ‘saltar’ para o topo da modalidade.

Tinha fama de homem de poucas palavras, conhecido pela frieza e maior contenção em público, mas sempre foi elogiado pelos colegas de equipa como alguém bem disposto que não acusa a pressão de ‘carregar’ expectativas, quer da equipa, que apostou nele em 2016 e desde então, quer do país, que queria um ‘herói’ e conseguiu-o, dando-lhe ainda um rival: Pogacar.

Essa rivalidade, como os vários ‘azares’ por que foi ficando conhecido, das lesões e quedas aparatosas aos abandonos e outros desgostos, levaram-no a adotar em público uma ‘persona’ diferente, mais adequada ao drama que costuma acompanhá-lo.

“É uma boa preparação para a Vuelta”, brincou o antigo vice-campeão mundial de contrarrelógio, durante uma etapa do Tour em 2022, à conversa com o ex-ciclista tornado repórter Alberto Contador, um exemplo do seu humor seco e cínico.

Nova queda na Vuelta de 2022, que o fez abandonar, acabou-lhe com a temporada e colocou-o no caminho de uma longa recuperação. Em 2023, voltou como sempre: ganhou 100% das corridas que disputou, Tirreno-Adriático, Volta à Catalunha e agora o Giro, consagrando-o como um dos grandes campeões do século XXI.
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