Catar 2022. Irão e Estados Unidos. Quando a geopolítica também entra em campo

por Andreia Martins - RTP
Museu FIFA

Esta terça-feira, pelas 19h00, Irão e Estados Unidos defrontam-se para decidirem quem segue em frente para os oitavos de final, com ambas as seleções ainda a poder sonhar com a possibilidade de apuramento. É um dos jogos mais aguardados desta fase de grupos do Mundial de 2022 e não só pelo que pode acontecer dentro das quatro linhas, mas também pelo imenso significado político de um embate entre as seleções de dois países arqui-inimigos. O jogo vai ter transmissão em direto na RTP1.

21 de junho de 1998, Stade de Gerland, Lyon, França. O Mundial de 1998 foi palco de um dos jogos com maior carga política da história, uma partida que é reeditada esta terça-feira no Estádio Al Thumama, no Catar.

No Mundial de França, há 24 anos, as duas seleções nacionais de futebol defrontaram-se pela primeira vez. O Irão participava no seu segundo mundial, os Estados Unidos na sexta competição da FIFA.

Na altura, o jogo terminou com a vitória do Irão por 2-1, tendo este sido o primeiro triunfo da “Team Melli” em fases finais da competição. No entanto, o resultado final foi um tópico secundário perante a tensão mas também com as imagens de confraternização dos jogadores de países rivais a ficarem para a história.

De recordar que os dois países não têm relações diplomáticas desde 1980, aquando da tomada de reféns da Embaixada norte-americana em Teerão, um acontecimento histórico que se seguiu à Revolução iraniana de 1979 e que tem raízes em eventos anteriores. Quando a CIA interveio no país, auxiliando o golpe de Estado de 1953 que colocou o Xá no poder, os Estados Unidos estavam a determinar as linhas orientadoras para as próximas décadas de hostilidade.

Desde então que ambas as nações se diabolizam mutuamente: são os “mullahs loucos” contra “O Grande Satã”, como resume o académico norte-americano William Orman Beeman num livro de 2008 sobre a retórica, os estereótipos e o discurso hostil de várias décadas entre Washington e Teerão.

Voltemos à partida de 1998 em Lyon. O iraniano Mehrdad Masoudi foi designado pela FIFA como principal responsável de comunicação daquele "jogo quente" da fase de grupos. Com as questões diplomáticas envolvidas, as responsabilidades extravasavam os deveres e tarefas habituais, até porque estava em causa uma das competições desportivas com mais audiência e mediatismo a nível mundial.

“Um dos primeiros problemas foi que o Irão era a equipa B e os Estados Unidos eram a equipa A. Segundo os regulamentos da FIFA, a equipa B deve dirigir-se à equipa A para o cumprimento antes do jogo, mas o Líder Supremo do Irão, Khamenei, deu ordens expressas para que a equipa iraniana não se dirigisse aos norte-americanos”, recorda o responsável em declarações à revista norte-americana especializada em futebol FourFourTwo.

Foi negociado um compromisso: acabaram por ser os jogadores norte-americanos a caminhar em direção aos jogadores iranianos. Do lado da Federação iraniana de futebol, pretendia-se demonstrar uma imagem positiva do país, e por isso, quando os jogadores norte-americanos se dirigiram aos adversários para o cumprimento antes do apito inicial, cada um recebeu das mãos dos iranianos um bouquet de rosas brancas, símbolo de paz no Irão.

De forma surpreendente, as duas equipas acabaram por se juntar numa foto de equipa conjunta.

Para lá da sensibilidade particular de cada país ou a cuidadosa coreografia diplomática que envolveu cada momento do jogo, havia preocupações ainda mais relevantes para a FIFA e para o país anfitrião. Isto porque a organização terrorista dos Mujahidin, também conhecida pela sigla MEK – cujo principal objetivo é o derrube do regime iraniano - conseguiu comprar 7.000 dos 42.000 bilhetes para o jogo.

Esta organização de protesto acabou por conseguir colocar algumas faixas e cartazes dentro do estádio, mas as televisões tinham sido alertadas para que algumas inscrições e imagens fossem evitadas na transmissão.

Em resposta, os serviços de segurança foram alertados para um possível “plano B” para interferir no jogo: uma possível invasão de campo, o que motivou um reforço da segurança no estádio naquele dia.

O então presidente da FIFA, Sepp Blatter, reconheceu que o organismo tinha recebido “ameaças anónimas de disrupção por parte de exilados iranianos”, mas tudo acabou por decorrer de forma ordeira e pacífica.

No final do jogo, a vitória do Irão por 2-1 foi festejada com grande intensidade no país, até porque aquela era a primeira vez que a seleção iraniana vencia um jogo numa fase final de um mundial de futebol. Nesse ano, nem os Estados Unidos nem o Irão conseguiram seguir em frente na competição, tendo sido eliminados na fase de grupos.

Não obstante o resultado, o que ficou daquela partida foi sobretudo uma aproximação, pelo menos no plano desportivo, entre dois países de costas voltadas. Menos de dois anos depois, as duas seleções voltaram a encontrar-se num surpreendente encontro amigável que decorreu em Pasadena, Califórnia, a 16 de janeiro de 2000.

Mehrdad Masoudi, o responsável da FIFA, realça que este segundo jogo, ainda que tenha sido mais discreto, foi ainda mais significativo que o primeiro ”porque foi um amigável e necessitou de uma cooperação de ambos os lados”.
Todos os olhos no Catar
Neste mundial de 2022, Irão e Estados Unidos fazem parte do Grupo B, juntamente com a Inglaterra e o País de Gales. As quatro seleções chegam à terceira jornada da fase de grupos onde está tudo por decidir, uma vez que todas mantêm a esperança de se qualificarem para a próxima fase da competição.

O jogo entre Irão e Estados Unidos irá decorrer à mesma hora da partida entre a Inglaterra e o País de Gales, como de resto costuma acontecer nas derradeiras jornadas das fases de grupos de fases finais. A Inglaterra está em primeiro no grupo com 4 pontos, seguida do Irão, que conta com três pontos. Segue-se a seleção dos EUA, com 2 pontos e finalmente o País de Gales, com um ponto.

A participação do Irão neste campeonato do mundo tem sido marcada por momentos de protesto relacionados com a situação que se vive no país.
É então a terceira vez na história que Irão e Estados Unidos se defrontam, mas hoje a realidade geopolítica consegue ser ainda mais complexa do que há 24 anos, sobretudo para a formação orientada pelo português Carlos Queiroz.

Desde os jogos de 1998 e mais tarde em 2000, muito aconteceu nos palcos diplomáticos para aproximar e afastar os dois países. Desde as guerras dos Estados Unidos no Médio Oriente, no Iraque e no Afeganistão, ao discurso do “Eixo do Mal”, em que o presidente George W. Bush inclui os iranianos no mesmo lote de Iraque e Coreia do Norte, passando pela problemática das capacidades nucleares do Irão e as negociações do acordo sobre o programa nuclear.

Entre as recorrentes tentativas de aproximação, o resultado neste final de 2022 é para já de um completo afastamento. Ainda no sábado, o Líder Supremo do Irão, o ayatollah Khamenei, rejeitava categoricamente qualquer negociação com os Estados Unidos em relação aos protestos que assolam o país.

No futebol propriamente dito, o Irão foi derrotado pela Inglaterra (6-2) no primeiro jogo deste campeonato do mundo, depois de um emocionante início de jogo em que os jogadores optaram por não cantar o hino em protesto contra a situação que se vive no país. No jogo de sexta-feira, na vitória por 2-0 sobre o País de Gales, o hino nacional iraniano foi assobiado por adeptos no estádio. Do lado dos Estados Unidos, a seleção norte-americana não foi além de dois empates frente às seleções do País de Gales e Inglaterra.

Mesmo quando o tema central é o desporto, é praticamente impossível contornar a realidade interna do país, em particular com os vários tumultos e manifestações desde setembro, na sequência da morte de Mahsa Amini, uma iraniana de 22 anos que tinha sido detida pela polícia da moralidade de Teerão por alegado uso indevido do hijab.

Uma adepta iraniana homenageou Mahsa Amini no jogo do Irão contra o País de Gales. Os seguranças acabaram por repreender o ato de protesto. Foto: Dylan Martinez - Reuters


Desde então, as últimas semanas têm sido de violência e repressão em várias cidades iranianas. De acordo com várias organizações não-governamentais, registaram-se pelo menos 400 mortes em protestos nos últimos meses e mais de 17 mil manifestantes foram detidos. E a agitação não é indiferente aos jogadores ou equipa técnica.

“Não está correto chegar a este mundial e pedir que [os jogadores] façam coisas que não são da sua responsabilidade. Eles querem trazer orgulho e alegria ao povo”, sublinhou Carlos Queiroz após o jogo frente à Inglaterra.

“Nem imaginam o que estes miúdos estão a viver nos bastidores nos últimos dias, só porque se querem expressar como jogadores de futebol”, acrescentou o selecionador nacional.

Medhi Taremi, jogador do FC Porto, falou sobre o momento da equipa antes do jogo com o País de Gales: “Com todo o respeito, gostava de dizer algo: o que diga aqui não vai ter efeito nenhum. Alguns vão entender ou não. O que posso fazer é jogar futebol, não quero falar de problemas políticos. Não estamos sobre nenhuma pressão, estamos aqui para jogar futebol”.

O avançado portista de origem iraniana reconheceu que o primeiro jogo “não teve futebol” perante as circunstâncias externas que afetaram os jogadores. “O primeiro jogo não foi de futebol, por tudo o que o rodeou. O nosso Mundial começa agora. Temos de conseguir esses seis pontos e fazer o nosso povo feliz”, acrescentou. No segundo jogo da fase de grupos, a seleção iraniana venceu o País de Gales, o que permite aos jogadores manter a esperança na qualificação.

Do outro lado do campo, os Estados Unidos também anseiam pela qualificação, mas também não ignoram a realidade interna do país adversário. Dias antes do jogo, a polémica entre os dois países desenrolou-se nas redes sociais. A federação norte-americana de futebol partilhou uma imagem relativa à partida das duas equipas em que a bandeira iraniana surgia sem o emblema da República Islâmica, que representa Alá, mas apenas com as três cores da bandeira: verde, branco e vermelho.

A federação iraniana acusou a congénere de ter cometido “um ato não profissional”, enquanto os norte-americanos dizem que esta foi uma forma de “mostrar solidariedade com as mulheres no Irão”. Neste jogo de emoções fortes onde as duas seleções definem o seu futuro na competição, o mundo vai estar atento a todos os sinais de aproximação ou hostilidade, solidariedade ou agressividade, dentro e fora das quatro linhas.
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