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No novo Afeganistão quem distribui jogo são a China e a Rússia

por Graça Andrade Ramos - RTP
Uma família afegã atravessa a fronteira "da amizade" entre o Afeganistão e o Paquistão Reuters

Muitos líderes e altos responsáveis mundiais afirmaram nos meses mais recentes ter chegado o momento de os afegãos determinarem o seu próprio destino. O fulgurante regresso ao poder dos taliban mudou tal discurso em poucas horas. O futuro do Afeganistão está muito longe de pertencer apenas a quem lá habita. Ou a quem se vê forçado a lá ficar.

A retirada militar norte-americana precipitou uma enxurrada de problemas, incluindo o desmoronar do Governo em Cabul, e agora os Estados Unidos parecem ansiosos por passar a batata quente que constitui o busílis afegão, que nunca conseguiram resolver em 20 anos e de forma a talvez fazer o mundo esquecer os últimos dias. Desde segunda-feira, Washington multiplicou contactos diplomáticos com vista à cooperação não só dos seus eternos aliados europeus, mas também do Paquistão, da Rússia e da China, em busca de apoios para o acolhimento súbito de milhões de refugiados e de influências para uma solução política pacífica para o Afeganistão.

Segunda-feira à noite, logo após a queda de Cabul e a pedido dos norte-americanos, o conselheiro de Estado e ministro chinês para os Negócios Estrangeiros, Wang Yi, conversou ao telefone com o secretário de Estado Antony Blinken sobre o Afeganistão.

Conciliador, Blinken cumprimentou a participação da China numa reunião em Doha sobre o problema, sublinhando que a situação entrou numa fase crucial. Wang retorquiu simplesmente que Pequim está pronto a colaborar para garantir uma aterragem suave do Afeganistão, que evite uma nova guerra civil ou um desastre humanitário e previna a recaída do país nos braços do terrorismo islâmico.

Esse é o problema mais premente que ambas as potências partilham. Os Estados Unidos não querem ser alvo de novos ataques como o foram a 11 de setembro de 2001. E a China dispensa ver o Afeganistão tornar-se refúgio para o Movimento Islâmico do Leste do Turquemenistão, que inclui revoltosos da minoria uighur que têm desestabilizado a sua província de Xinjiang, a qual faz fronteira com o país.

Os taliban têm multiplicado garantias de que o Afeganistão não irá voltar a ser um paraíso para o terrorismo islâmico mas a sua palavra não tem historial muito credível.

A pressão sobre os novos senhores afegãos é elevada e vem de todos os lados. Os Estados Unidos já exerceram por exemplo a sua influência para congelar os programas de auxílio do Fundo Monetário Internacional ao país, sem praticamente se ouvir um protesto da China ou da Rússia.

O xadrez de toda a Ásia Central está a redesenhar-se e para já a cooperação internacional parece ser a palavra de ordem.
Nada de tropas
Os contactos de Washington com Moscovo e com Pequim, num tom bem menos arrogante do que o habitual, reconhecem implicitamente os próximos senhores do mundo a perfilar-se para tentar mandar no Afeganistão.

Antevisão partilhada pelos taliban que, a par da sua ofensiva no terreno, iniciaram recentemente uma ofensiva diplomática de reuniões com altos responsáveis paquistaneses, chineses e russos. Sinal dos bons frutos de tal entendimento é a tolerância demonstrada à guarda estabelecida pelos taliban à entrada da embaixada russa e do bairro chinês em Cabul.

Enquanto potências regionais, russos e chineses têm estado atentos à “mais longa guerra” norte-americana e há muito que preparam o terreno. Estão também cientes de que os norte-americanos podem ter cartas na manga. Um jogo de espelhos requer prudência.

O enviado especial da Rússia ao Afeganistão, Zamir Kabulov, exprimiu no início da semana sem reservas o que está em jogo.

“Mantivemos contactos com os taliban nos últimos sete anos, debatendo muitas questões”, revelou. “Vemo-los como uma força que irá desempenhar um papel central no Afeganistão, mesmo que não venha a deter todo o poder. Todos estes fatores, incluindo garantias dadas pelos principais líderes taliban, permitem-nos manter a calma perante os mais recentes desenvolvimentos, embora continuemos atentos”. A delegação taliban que visitou Moscovo antes de os islamitas lançarem a sua ofensiva militar levou na bagagem garantias de que os países vizinhos na órbita da influência do Kremlin não teriam nada a temer e de que o Afeganistão não se iria tornar uma placa central de terrorismo ou de produção e tráfico de drogas.

Os russos consideram oficialmente os taliban como grupo “terrorista” com quem é crime dialogar, mas descrevem-nos agora como “moderados e responsáveis” e esperam conseguir desempenhar um papel no desenvolvimento do país.

Moscovo organizou contudo uma demonstração de força através de exercícios militares na antiga república soviética do Tajiquistão, para dissuadir eventuais fações mais bélicas e afoitas entre os taliban de tirarem partido do armamento com que os norte-americanos equiparam as forças afegãs na última década.

Também vão esperar para ver antes de reconhecer um eventual executivo taliban no Afeganistão.

Antes de mais, Moscovo está atenta à sua maior aliada regional, Pequim, para a qual convergem agora todos os olhares.

Os respetivos ministros dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov e Wang Yi, conversaram terça-feira a esse respeito e concordaram em coordenar esforços de auxílio ao Afeganistão e em não enviar tropas para o terreno para preencher o vácuo deixado pelos norte-americanos.

O diretor do Centro para os Estudos Contemporâneos do Afeganistão, Andrey Serenko, afirmou ao Financial Times que a Rússia “terá de cooperar com a China quase de certeza”. “A China tem todos os trunfos agora. A China influencia o Paquistão, a China mantém a sua posição dentro do Afeganistão, e mantém os taliban responsáveis”, referiu.

“A estratégia russa face ao Afeganistão vai agora depender da China, irá ajustar-se à China cada vez mais. O irmão mais velho, Pequim, vai tocar aqui o primeiro violino”, vaticina.

Arkady Dubnov, analista político de Moscovo para a Ásia Central, acredita igualmente que russos e chineses se vão entender.

“Podemos alinhar os nossos interesses ao opor-nos aos EUA”, referiu ao FT. “O que é bom para nós é mau para os americanos e o que é mau para nós é bom para os americanos. Hoje a situação é má para eles e por isso é boa para nós”, resumiu.
Considerações chinesas
Para Pequim, a situação é menos simples. Sabe que nada agradaria mais a Washington do que ver a China tornar-se a próxima grande vítima do atoleiro afegão. Alguns analistas chineses antecipam nos próximos anos ações subversivas norte-americanas para complicar a vida aos chineses – e aos russos – na área, drenando-lhes recursos, à semelhança do que sucedeu na guerra entre o poder soviético e os senhores da guerra afegãos.

Os poderes decisórios em Washington estão conscientes de que, uma vez a retirada concluída, qualquer caos no Afeganistão irá ter um impacto muito menor nos Estados Unidos do que na Rússia e na China, mesmo tendo em conta a ameaça islamita, que tem tido no Ocidente os alvos principais.

Tal circunstância iria servir a estratégia de contenção norte-americana de dois dos seus “maiores competidores estratégicos”, como referiu Zhu Yongbiao, diretor do Centro para os Estudos do Afeganistão na Universidade de Lanzhou, ao jornal Global Times.

A absoluta influência sobre o Paquistão que os norte-americanos costumam atribuir à China é entretanto algo que serve os interesses de Washington, lembrou ainda.

“Desde que a China coopere, os EUA poderão por essa via influenciar o Paquistão ou os Taliban ou no mínimo prevenir fricções”, explicou o especialista chinês.

O maior objetivo norte-americano poderá contudo ser outro. “Os EUA querem que a China compartilhe a pressão do apoio económico ao Afeganistão, para ajudar a desenvolver o país, para este não se tornar um Estado falhado e um ninho de terroristas”, afirmou Zhu. Diplomatas de topo de diversos países asiáticos confirmaram recentemente ao Financial Times que Pequim está disposta a enterrar centenas de milhões de dólares para financiar a reconstrução de infraestruturas críticas no Afeganistão.

A China poderá oferecer a promessa de reconhecimento formal de legitimação do poder taliban como moeda de troca ou pelo menos pressionar as Nações Unidas a retirarem o grupo da lista das organizações terroristas, apesar de isso requerer a cooperação norte-americana o que torna esse um objetivo de longo prazo.

Tudo estará contudo dependente de os Taliban aceitarem as exigências chinesas, sobretudo quando ao terrorismo islâmico.

Pequim deverá igualmente lembrar-se dos biliões de dólares investidos por Washington no Afeganistão, não só em armamento mas também na construção de escolas, de hospitais e de autoestradas, infraestruturas na sua maioria nunca sequer usadas e que se degradaram ao abandono.
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