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Arquivo Digital e Imaterial da Comenda. Salvaguardar a história de gerações, combater a desertificação e recuperar a identidade local

por Carla Quirino - RTP
Imagem adaptada. Arquivo Digital e Imaterial da Comenda

São mais de quatro mil documentos recolhidos, inventariados, classificados e digitalizados que constituem o Arquivo Digital e Imaterial da Comenda (ADIC). Há seis anos que este espólio está disponível online e integrado na Rede Nacional de Arquivos. A RTP conversou com o mentor do projeto, Ricardo Branco, que acredita que a valorização deste património imaterial promove a identidade local, favorece a coesão social e sobretudo, combate a desertificação da aldeia do Alto Alentejo.

Ao salvaguardar este património de cariz antropológico, a coleção privada de acesso público potencia a reconstituição de muitas histórias das gentes desta pequena aldeia do norte alentejano.

A Comenda, do município de Gavião, é uma aldeia que atualmente tem pouco mais que 600 habitantes, mas nem sempre foi assim. Na década de 1950, os cerca de 2.300 residentes enchiam as ruas com comércio, afazeres agrícolas e festas. A maioria não escapou à objetiva de Manuel Fitas, o fotógrafo da aldeia.
Foto Fitas
Em 2015, Armando Fitas, ao vasculhar uma velha garagem que lhe coubera por herança, na aldeia da Comenda, encontrou um caixa de madeira. Dentro, estavam cerca de “dois mil negativos a preto e branco, muito bem preservados”.

“Os negativos estavam dentro dos tubos de alumínio. Fiquei espantado por estar a salvo este trabalho do meu pai. Aí, comecei, de uma maneira muito arcaica, a digitalizar todo aquele material”, conta Armando à RTP.

Manuel Fitas, que nasceu em 1930, era um homem “muito avançado no seu tempo”. O pai Fitas, entusiamado por esse novo mundo da imagem, decidiu adquirir uma máquina fotográfica para registar os momentos em família, especialmente impulsionado pelo nascimento do filho Armando, em 1955.

“Estávamos nos anos 50 e a fotografia era uma novidade”, descreve Armando. Com a primeira máquina, uma Zeiss ikon que o filho ainda guarda, Manuel fez-se fotografar com Rosa e o bebé Armando com meses. "Talvez seja a fotografia mais antiga" da família Fitas, recorda emocionado.

Imagem adaptada. Primeira máquina de Manuel Fitas, usada na década de 1950, adaptada pelo filho a um tripé atual. Fotografia cedida por Armando Fitas (esq). Rosa e Manuel com bebé Armando | ADIC (a meio) ."Manuel Fitas a tratar do seu gado"(dir) ao pé da pequena oficina de sapateiro, com um avental de cabedal, explica Armando | ADIC

Conhecido por homem dos sete ofícios, entre os quais carteiro, sapateiro e proprietário de uma loja onde "vendia jornais diários vindos de Lisboa", Manuel começou a ser requisitado por muitas famílias da aldeia para realizar a tarefa de fotógrafo, "tornando-se mais profissional".

E os temas eram diversificados. Casamentos, batizados, inaugurações oficiais como a Casa do Povo, retratos para os cartões de identidade ou mesmo para "as sortes" - inspeção para o recrupamento militar dos "moços que iam para a guerra no Ultramar, que hoje já não existe", descreve. 

De imediato, este achado com a história fotografica de Fitas, remeteu Armindo para tempos de criança quando ajudava o pai, Manuel , juntamente com a mãe Rosa, a revelar os rolos de fotografias, lá pela década de 1960.  

Explica que o pai Fitas "montou um pequeno estúdio", construiu estruturas para pendurar o papel fotográfico para o secar após a arte da revelação que "aprendeu sozinho".

Armando ainda se lembra que o pai mandava vir os rolos da marca "Ferrania". Também o papel fotográfico e os produtos químicos do revelador e fixador vinham de uma loja em Lisboa “que ficava ao pé do elevador de Santa Justa".

Entretanto, conversa puxa conversa, acabou por chegar à fala com Ricardo Branco, também ele homem com raízes familiares radicadas no Alto Alentejo, que lhe disse ser da opinião em juntar todo aquele espólio porque “representava a história da terra”.

Afinal, numa aldeia remota alentejana, houve um dia um fotógrafo que guardou em imagem o quotidiano da Comenda. E o filho acentua: "São documentos que ficam".
Seis anos de Arquivo Digital e Imaterial da Comenda
Ricardo é investigador e consultor científico de carreira na área da Química, mas tem um gosto particular por arquivos. Branco explica à RTP que, com a descoberta do primeiro conjunto de fotografias de Manuel Fitas, surgiu a ideia de começar a recolher depoimentos e de testemunhos orais na década passada, sobretudo dos anciãos da aldeia. Até porque "só os mais velhos poderiam reconhecer as muitas personagens que apareciam nas imagens, e assim cruzar informação".

Ricardo Branco, mentor do projeto filantrópico | Carla Quirino - RTP

Desta forma, em 2016, começou a ser pensado e organizado o projeto filantropo do Arquivo Digital e Imaterial da Comenda (ADIC), liderado por Ricardo Branco. Desde 2018, constituído por vários espólios, entre os quais este fotográfico de Manuel Fitas, o ADIC faz parte da Rede Nacional de Arquivos, tendo como parceiro a Torre do Tombo e a DGLab.

Numa lógica onde "a história de pequenos eventos não concorre para a grande história que conhecemos dos reis e rainhas”, Ricardo sublinha que “essa grande história não se pode alhear das pequenas comunidades e do papel que elas têm nesse percurso”.

E sobretudo, “na iminência da perda desse património – fotografias e documentos -, é muito importante salvaguardá-lo para se conseguir reconstruir e interpretar a história desses locais, por mais insignificantes que possam ter sido”. (…) “Não nos podemos esquecer que neles viveu gente e que essas pessoas tem uma história”, acentua.

Juntamente com o pai, Jorge Branco, que “como guardião dessas memórias enquanto médico e também enquanto interessado pelas suas raízes” pensaram que a salvaguarda desse património poderia contribuir para a “valorização da identidade de um local e melhorar a dinâmica da coesão social e territorial das pequenas aldeias do Alto Alentejo e do Baixo Alentejo, perante o definhamento populacional”.
Projeto-piloto
Ricardo explica que ”este projeto é um balão de ensaio”. Isto porque surge “num sítio onde menos se esperaria que acontecesse algo que justificasse a existência de um arquivo digital, este projeto é um balão de ensaio”. “A Comenda - para a maioria dos cidadãos de Portugal e Europa - não tem expressão conhecida e é um teste para contrariar essa ideia formatada de que estes lugares não têm história”, argumenta.

“É um local ótimo para fazer este tipo de ensaio antropológico e sociológico porque permite testar qual será o impacto que esta pequena e insignificante iniciativa pode ter, não só na comunidade local que ainda lá vive mas também naqueles que pensam escolher aquele local como destino das suas vidas”, acrescenta.
Mais de 200 doadores

Os achados de Armando Fitas não se ficaram pelos da garagem. Em junho de 2023, o sótão de outra casa esperava por ele para lhe revelar “mais um tesouro”. Durante as limpezas, “sem querer dei um pontapé a uma caixa. Fui abrir e para meu espanto, estavam lá muitas mais fotografias”.

Depois de reparar melhor, Armando começou a encontrar mais e mais caixas de negativos, mas estes estavam em “condições muito más, sujos e estragados por terem apanhado calor e chuva”. Ao ADIC somaram-se mais dois mil documentos. 

Para Armando, estes dois achados fizeram-no "sentir um arqueólogo", sobretudo porque "através deste espólio poder-se ver como era a vida do antigamente e como é hoje, são as provas".

O trabalho do fotógrafo da aldeia, pela mão do filho, tornou-se o maior contributo do espólio reunido no Arquivo Digital e Imaterial da Comenda. 

Neste momento cerca de 200 doadores têm contribuído com memórias, que podem passar não só por fotografias como todo outro tipo de documentos, como certidões, escrituras, cartões de identidade ou cartas militares. 

O documento com datação mais antiga é uma imagem de um grupo de pessoas durante uma pescaria, captada no Fratel, em 1912.

Pescaria no Tejo, Fratel - 1912. Fotografia datada como a mais antiga desta coleção | Arquivo Digital e Imaterial da Comenda
Joaquim Mendeiros e a festa da Bênção do Trigo

Um dos muitos associados que beneficiam deste espólio é Joaquim Mendeiros. Com 77 anos, conta que, ao consultar o arquivo, deliciou-se com fotografias do grupo coral as Cotovias, onde cantava quando tinha cerca de nove anos de idade. "Nós eramos os rapazes que faziam parte da festa do Trigo", diz Joaquim.

Era uma festa de cariz religioso dedicada à vida do trigo e ao longo da cerimónia. as Cotovias cantavam versos que descreviam as etapas do cereal desde a sementeira até acabar em farinha para se produzir a hóstia. "Eu fazia de solista e cantava versos próprios". Juntavam-se ainda as vozes dos trabalhadores da herdade do Polvorão e o coro das raparigas, também Cotovias. 


Grupo coral masculino As Cotovias na festa da Benção do Trigo em 1957. Todos trajados com um corpete e um chapéu, Joaquim Mendeiros é o segundo menino na linha de baixo a contar da esquerda| ADIC

A festa da Bênção do Trigo era organizada por um ilustre da terra, Pequito Rebelo, que assinava a letra das canções e o padre Horácio tratava da música, explica Joaquim. "Começámos a ensaiar alguns meses antes com o padre Horácio , que ia de Alcains para a Comenda", acrescenta. 

Para além dos retratos do coro, o arquivo digital também conserva os originais dos versos, publicados na época.

"O trabalho que o arquivo digital tem feito é extraordinário. Assim, a vida das pessoas da Comenda e esta festa ficam perpetuadas. Sem isso perdíamos a memória destes modos de vidas das gentes da Comenda.

Imagem adaptada. Duas páginas com alguns versos que o grupo Coral As Cotovias cantava durante a festa dedicada à vida do trigo | ADIC

Mendeiros recorda-se ainda de ter aparecido na RTP (que tinha iniciado as emissões regulares nesse ano). "Apareço com o molho de palha", diz animado. "Gostava imenso era de encontrar algum filme com som até porque gostava de saber como cantava na altura", remata, gargalhando.

A busca no Arquivo da RTP não foi difícil. E pelos 4.09 minutos da reportagem da festa da Bênção do Trigo, lá aparece Joaquim a cantar, com um braçado de trigo. Em 1957, as bobinas de áudio eram reutilizadas noutros trabalhos, daí não se ter conservado o som.
Fotografia do casamento perdida
Na exposição organizada pelo Arquivo Digital em homenagem ao fotógrafo da aldeia Manuel Fitas, inaugurada a 10 de junho, muitas novas fotografias foram reveladas. Numa destas memórias estava uma fotografia de um casamento, cujos os "noivos ainda vivos, de seu nome - António Gamas Alexandre e Henriqueta Matos -, desconheciam a sua existência, 50 anos depois, para júbilo dos próprios", conta Ricardo Branco. Alguns destes contributos são bastante recentes e ainda não foram incorporados online.


Casamento de  António Gamas Alexandre e Henriqueta Matos. Fotografia revelada pelo ADIC, 50 anos passados.

Armando destaca mais uma vez a "importância do arquivo", pois as voltas o tempo deixaram esquecida a imagem da cerimónia e "o filho, que  não tinha fotografias do casamento dos pais, agora vai tê-las".

"São histórias que se multiplicam a cada retrato que está depositado", reitera Ricardo.

E acrescenta:"Todas estas imagens comportam uma identidade coletiva e para além dela todo um ritual de uma história de família indevidual".
Descoberta do Clube Castelanense e a equipa de futebol
A média de idade da população da Comenda está acima dos 60 anos e são essas as pessoas que colaboram com o projeto do arquivo. Ricardo recorda-se de que entre as muitas entrevistas apareceram referências à existência de uma associação fundada em 1950, que até então era desconhecida ou estava esquecida.

“O professor Lourenço Monteiro (entretanto já falecido) e Francisco Tomé relataram, inclusive que tinham sido sócios fundadores dessa associação que se chamava Club Castelanense de Castelo Sernado , localidade que faz parte da freguesia da Comenda”, explica. “E tinha um propósito muito claro - realizar um salão de baile na aldeia”, acrescenta.

O Arquivo lançou mãos à obra e “vasculhou o acervo do (extinto) Governo Civil de Portalegre (…) e conseguimos desenterrar o nosso tesouro”.

Nesse espólio estava toda a documentação da legalização e os estatutos de fundação, tal qual esses sócios fundadores tinham explicado no testemunho, diz Ricardo.

O Arquivo passou a ser o promotor da ativação que ocorreu através da aprovação dos Registos Notariais de Pessoas Coletivas, organismo que aceitou reativar a associação com base nesses documentos. O Clube Castelanense dá atualmente o telhado à entidade jurídica e fiscal do ADIC.

Ricardo descobriu ainda que o avô tinha sido presidente da direção dessa associação, ao mesmo tempo que pertencia à equipa de futebol da Comenda.

“Esta fotografia relata uma das primeiras imagens e a história desta equipa. E o meu avó – Agostinho Jorge está ao centro. É uma fotografia de 1950, altura da fundação da nossa atual associação, o Clube Castelanense", descreve.

Ao lado do avó, está o padre Farinha, continua Ricardo:"Era um padre local e fanático por futebol. Foi o impulsionador da primeira equipa de futebol amador da aldeia, que estava associada, exatamente, à parte desportiva desta associação"| ADIC
DiVA´s - replicar modelo

Durante o último ano foi possível pensar “num salto de escala e replicar este formato, transformando um modelo local num projeto em rede”, relata Ricardo Branco.

“A ideia será replicar este modelo de arquivo por pontos nacionais e europeus de forma que esses locais possam não só, beneficiar de uma estratégica de incentivo à coesão territorial, patrimonial e ainda à preservação dos seus acervos documentais privados", explica.

Em curso está uma candidatura de um "projeto de cooperação europeia, que será encabeçado por nós" fazendo crescer o projeto ADIC para DiVA's - Digital and Imaterial Village's Archives.

Da Arménia a Espanha, da Polónia ao Mogadouro português, juntam-se diversos parceiros destintos da Comenda nesta candidatura. Porém, em grande medida, estão todos ligados à preservação dos seus patrimónios locais.  Ao entrelaçarem as diferentes competências num projeto de cooperação, fortalecem não só essa rede de partilha como o conhecimemto de cada sítio deixa de ter fronteiras.

"O objetivo aqui é sempre a partilha de experiências e de conhecimentos, de forma que as tecnologias que, por exemplo, o parceiro finlandês irá ceder possam ser usadas e servir de mais-valia, não só ao DiVA's como a todos os parceiros envolvidos", explicla o mentor do projeto. Outro exemplo surge com o o parceiro polaco, que é especializado em fazer edições temáticas para valorização de espólios – quer em exposição ou em catálogo - desta forma "podem ajudar-nos a realizar edições que dêem expressão ao DiVA's", sugere.

"E de forma reciproca, os parceiros recriam o modelo de Arquivo usado na Comenda, para reproduzirem na sua própria comunidade, para terem visibilidade no espaço público", realça Ricardo.

Para assinalar este pontapé de saída, decorrerá já no fim do mês de agosto, dia 31, no Auditório do Museu da Tapeçaria de Portalegre, mais uma edição da Bienal de Cultura – III Encontros de Cultura do Alto Alentejo, evento organizado pelo Arquivo - DiVA's.



Esta Bienal realiza-se desde 2020 e este ano o tema escolhido é a Liberdade de Expressão. Como pano de fundo, está a efeméride do ciquentenário do 25 de Abril de 1974. Vão decorrer debates e outras várias atividades. Entre os oradores estará presente José Pacheco Pereira na vertente historiador e impulsionador do arquivo pessoal, Ephemera.
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