Matthias Sindelar. O futebolista que enfrentou os nazis

A subtileza contra a força bruta. A inteligência ao invés da imposição do físico. Muito antes de Johan Cruyff ou Lionel Messi houve Matthias Sindelar. Um dos melhores jogadores de futebol no pré-II Guerra Mundial ousou mostrar a sua qualidade nos campos apesar do físico frágil. O Homem de Papel, como era conhecido, foi tão audaz dentro dos relvados como fora deles. Reconhecido como o desportista do século XX na Áustria, Sindelar foi um dos símbolos da rejeição à Alemanha Nazi e respetiva Anschluss. Morreu novo, em circunstâncias misteriosas.

Nascido em Kozlov, atual República Checa, e Império Austro-húngaro em 1903, Matthias Sindelar cedo se mudou para a capital, Viena, com a família a procurar melhores condições de vida.

Foi no bairro de Favoriten, um dos mais pobres da capital austríaca, que Sindelar e a sua família criaram raízes, numa comunidade que falava primordialmente checo. Foi neste local que Sindelar começou a jogar à bola, uma de trapos, até ter sido obrigado a trabalhar, aos 14 anos, como serralheiro, para ajudar a família com graves carências económicas.


O Hertha de Vienna foi o primeiro clube a acolher Matthias Sindelar e o seu talento único para jogar futebol. Em 1924, o FK Áustria (Rapid Vienna) recrutou-o para a equipa sénior. Sindelar nunca deixou o clube da capital e por ele venceu um campeonato austríaco (1926), cinco Taças da Áustria e duas edições da Taça Mitropa, disputada por vários países do centro da Europa.

Para sempre, Matthias Sindelar será reconhecido como o ‘Homem de Papel’, pelo seu físico frágil, mas também pela facilidade com que passava por adversários e marcava golos. “Como se tivesse o cérebro nas pernas”, notou o crítico de teatro Alfred Polgar.
A chegada à seleção da Áustria
Aconteceu em 1926. A 28 de setembro, Matthias Sindelar conseguiu a primeira internacionalização pela Áustria, estreando-se com um golo, frente à Checoslováquia, com uma vitória por 2-1.

Na partida seguinte, a seleção austríaca goleou a congénere suíça com dois golos do Homem de Papel. A Suécia foi a vítima seguinte, num triunfo por 3-1. Nos primeiros três jogos pela Áustria, Sindelar marcou quatro golos mas até 1931 a sua participação na equipa continuou a ser diminuta.

Ainda assim, Sindelar fez 43 jogos pela sua amada Áustria e marcou 26 golos, num total de 25 vitórias, 11 empates e sete derrotas.
A "Wunderteam"
Hugo Meisl foi o grande obreiro da "equipa maravilha" da Áustria. Uma equipa tão forte que se diz ser a predecessora de grandes seleções como a da Hungria dos anos 50, da Holanda dos anos 70 e da equipa espanhola que venceu o campeonato do mundo em 2010, inspirada pelo tiki-taka. Tudo começou depois de um duelo frente à seleção de Inglaterra e que terminou com uma derrota dos austríacos por 4-3.

Depois de convidada a equipa pelos criadores do futebol, Meisl não se deixou abater pela ideia de que a força tinha de se sobrepor à estética e Sindelar teve um papel importante. Instado a chamar novamente o avançado, Meisl fez Sindelar regressar com a camisola da Áustria e aí começou uma era de ouro.


Foi em maio de 1931 que a "Wunderteam" tomou de assalto os relvados e a Escócia foi a primeira vítima. Goleada por 5-0, com Sindelar a regressar aos golos com a camisola austríaca. Daí para a frente, a equipa de Hugo Meisl venceu mais seis partidas e empatou outras duas pelo meio (Hungria e Checoslováquia).

Num esquema de 2-3-5 e com a companhia de jogadores como Josef Smistik, Josef Bican (um dos grandes goleadores do futebol), Johann Hórvath e Rudi Hiden (um dos melhores guarda-redes a atuar no perído entre as duas guerras), marcou vários golos numa equipa que chegou ao Mundial de 1934 como uma das grandes favoritas a vencer.
O Mundial de Itália em 1934
Jogado em Itália, houve muita expectativa com o Mundial que a Áustria de Sindelar ia disputar. Uma das grandes favoritas à vitória, a "Wunderteam" já tinha passado pelo seu melhor período mas o talento de grandes jogadores, aliados à sabedoria de Meisl, davam boas hipóteses aos austríacos.

A prova começou imediatamente num sistema a eliminar, nos oitavos de final. Nessa fase, a Áustria levou a melhor sobre a seleção francesa mas teve de ir a prolongamento para conseguir o triunfo. Sindelar marcou aos 44 minutos e só em tempo extra a equipa de Meisl arrecadou a passagem.

Nos quartos de final, a Hungria foi o adversário. Vitória, sofrida, por 2-1, que garantiu a chegada às meias-finais contra a anfitriã: a Itália.

Equipa construída com base na chamada de vários jogadores argentinos a quem foi dada a nacionalidade italiana por Mussolini, mesmo antes de a prova começar. Um torneio dominado pelo Duce italiano, que controlou as arbitragens das partidas da seleção italiana.


Sindelar foi marcado de forma impiedosa por Luís Monti e massacrado com faltas que não foram sancionadas. Derrota por 1-0 da Áustria e fim do sonho no Mundial de 1934. A Itália alcançou o último jogo da prova, com o mesmo árbitro da partida com a "Wunderteam" a ser escolhido para a derradeira partida, que os italianos viriam a ganhar frente à Checoslováquia.

Na partida de atribuição do terceiro e quarto lugares, a Áustria foi derrotada pela Alemanha, por 3-2, depois de alguns meses antes ter imposto duas goleadas humilhantes para os germânicos. Depois de alcançado o quarto lugar, Matthias Sindelar foi escolhido para fazer parte da equipa do torneio.
A Anschluss e o Anschlusspiel
Apesar da desilusão do quarto lugar no Mundial de 1934, a Áustria continuou a mostrar credenciais e alcançou a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de 1936, sem Matthias Sindelar no lote.

Em março de 1938, a vida na Viena amada de Sindelar sofre uma grande mudança. A Alemanha, de Hitler, anexa a Áustria e torna-a num distrito do Terceiro Reich, algo que as autoridades nazis decidiram festejar com um jogo de anexação: o Anschlusspiel.

Aconteceu a 3 de abril de 1938, no Prater Stadium, em Viena. Uma partida para celebrar a anexação e para que a seleção austríaca pudesse jogar a sua última partida, já que a Alemanha dissolveu a equipa e propôs aos jogadores austríacos que representassem a Alemanha Nazi.

Uma partida desde logo organizada para ficar empatada, sem golos, algo que seria do agrado das autoridades nazis. Sindelar sugeriu que a equipa austríaca jogasse com um equipamento com as cores da bandeira, de vermelho, branco e vermelho, ao invés do habitual preto e branco.

Quem viu o jogo naquela tarde diz que a Áustria dominou e falhou vários golos de propósito. Até ao minuto 70, em que Sindelar não quis falhar e marcou o primeiro golo da partida, para espanto dos Nazis. Depois do Homem de Papel, Karl Sesta também marcou e fixou o resultado em 2-0.

Há quem diga que Sindelar festejou efusivamente um dos golos à frente dos oficiais alemães.
O fim do Homem de Papel
Depois de dissolvida a seleção da Áustria, Sindelar foi convidado para fazer parte da equipa alemã. O avançado sempre recusou os convites nazis, alegando que já estava velho e que sofria de várias lesões. Apesar das explicações, Sindelar continuou a jogar.

O avançado continuou a jogar no FK Áustria que acabou por ver os seus dirigentes afastados, já que se tratava de um clube com ligações a judeus. Muitos foram proibidos de falar com Sindelar, algo que o jogador sempre recusou, mostrando sem pudor as amizades que tinha com vários círculos judeus.

Crédito: Biblioteca Nacional da Áustria

Os “roubos legalizados” dos Nazis em Viena terminaram com o avançado a comprar um café a Leopold Dril, que havia sido expropriado. Para além da recusa em jogar pela Alemanha, Sindelar recusou-se a usar propaganda nazi no seu café e deixava entrar toda gente, o que fez com que o edifício e o próprio jogador estivessem sob vigilância apertada da Gestapo.

Algo que pode ter contribuído para morte do Homem de Papel. A 23 de janeiro de 1939, Gustav Hartmann, amigo de Sindelar, deu pela falta do jogador e tentou procurá-lo no seu apartamento. Nele, o avançado foi encontrado morto na cama, juntamente com a namorada Camilla Castgnola, inconsciente, e que viria a morrer pouco tempo depois.

A morte do jogador aconteceu em circunstâncias misteriosas e até hoje não se sabe, de facto, qual a causa de morte de Sindelar. As autoridades alemãs realizaram uma investigação e ao fim de dois dias fecharam a mesma alegando que o jogador e a namorada morreram por inalação de monóxido de carbono.

No entanto, as teorias dispersam-se. Muitos acreditam que Sindelar tenha sido assassinado pela polícia nazi, pelas simpatias que mostrava pelos judeus, apesar de muitos dizerem que o jogador foi morto por grupos a quem Sindelar devia dinheiro, devido ao vício de jogo.

Outros acreditam que Sindelar se suicidou por não se querer submeter à Nova Ordem, tal como sustenta um poema de Friedrich Torberg, “Balada Sobre a Morte de um Futebolista”. Egon Ulbrich, amigo de Sindelar, disse num documentário da BBC em 2003, que as autoridades locais tinham sido subornadas para declarar a morte do jogador como um acidente para que pudesse haver um funeral de Estado.

Vários milhares de pessoas saíram à rua, em Viena, e prestaram o seu último tributo ao Homem de Papel.