"Sangue na Água". O duelo brutal entre Hungria e União Soviética

por Inês Geraldo - RTP
Ervin Zádor foi retirado da piscina a sangrar DR

A 6 de Dezembro de 1956, deu-se um dos acontecimentos mais marcantes na história dos Jogos Olímpicos. Num pavilhão em Melbourne, na Austrália, Hungria e União Soviética jogaram numa piscina um dos mais violentos jogos de polo aquático de sempre. Na origem do conflito, a política. Um mês antes, a União Soviética invadiu Budapeste e instaurou um novo governo no país magiar. Para a história fica a fotografia mundialmente conhecida de Ervin Zádor, a sangrar, após agressão do adversário soviético.

O maior evento desportivo do mundo é também palco para grandes acontecimentos mundiais. Depois da sensação causada por Jesse Owens em Berlim, na Alemanha nazi, em 1936, com a conquista de quatro medalhas de ouro, a política mundial voltou a entrar nos Jogos Olímpicos em 1956.

Melbourne foi o palco para um duelo que, mais do que desportivo, foi de vingança pelo panorama político. Em causa, está o jogo das meias-finais de polo aquático entre Hungria, uma das melhores seleções de sempre, e a União Soviética. Em pano de fundo, a invasão do Exército Vermelho a Budapeste por milhares de tanques em novembro de 1956, a instauração de um governo da simpatia soviética e milhares de mortes e refugiados.

Foto: a piscina onde foi jogada a partida entre Hungria e União Soviética em Melbourne - DR

Por isso, o duelo entre magiares e soviéticos teve um peso que ultrapassou as barreiras do desporto, com a imprensa mundial a dar conta da entrada da Guerra Fria nos Jogos Olímpicos.
O contexto político na Hungria
Após a II Guerra Mundial, a Hungria foi caindo sob o poder soviético. O Partido Comunista da Hungria fundiu-se com o Partido Social-Democrata, dando origem ao Partido do Povo Trabalhador da Hungria. Em 1949, quatro anos depois do conflito mundial, foi declarada a República Popular da Hungria.

Com um governo liderado por Mátyás Rákosi, fervoroso apoiante de Estaline, a Hungria entrou numa nova era, em que predominaram as nacionalizações na economia, com a consequente estagnação da mesma. Más condições de vida trouxeram mal-estar à população que era controlada pela AVH, Polícia de Segurança do Estado. Um dos mais brutais regimes ditatoriais europeus naquela altura.
A revolução Húngara
Rákosi acabaria substituído por Erno Gerö (depois do discurso crítico de Nikita Khrushchev no XXº Congresso do PCUS) e, em outubro de 1956, a população de Budapeste revoltou-se. O dia 23 de outubro marca o início de um protesto ao qual se juntaram milhares e que terminou a 10 de novembro de forma violenta.

Um grupo de estudantes universitários tomou a iniciativa de liderar uma manifestação, pacífica, contra a presença russa na Hungria. Na rádio foi pedida a saída dos ocupantes e foram feitas numerosas detenções pela polícia do Estado. Após uma tentativa de resgate, a AVH disparou sobre a multidão.

No dia seguinte, multidões continuavam na rua com vários oficiais e soldados húngaros a juntarem-se aos protestos, acompanhados de cânticos que pediam a saída dos russos da Hungria. A estátua de Estaline foi derrubada e os protestantes pediram o regresso ao governo de Imre Nagy, que já o tinha chefiado em 1953-1955, encabeçando na altura uma tímida tentativa de liberalização que lhe valeu ser expulso do Partido.

A 25 de outubro, tanques soviéticos, já nas ruas de Budapeste, atiraram sobre os manifestantes. O Comité do Partido Comunista (Politburo) entrou em cena e forçou Erno Gerö a renunciar ao seu cargo. Como consequência, os pedidos dos manifestantes foram ouvidos, e Imre Nagy regressou ao governo da Hungria.

Nagy foi rápido a explicar à população o que queria fazer para o futuro. Promessas de restauração das liberdades fundamentais, multipartidarismo e a extinção da polícia política foram feitas.

O Politburo aceitou as decisões de Nagy e numa primeira instância pediu a retirada das tropas soviéticas de Budapeste. Apesar de tudo, o clima renovado de confiança no futuro foi sol de pouca dura. Poucos dias depois, o mesmo órgão voltou atrás na decisão e Krushchev, preocupado, pediu a intervenção do Exército Vermelho.

Consciente das decisões da União Soviética, Imre Nagy, a 1 de novembro, anunciou a saída da Hungria do Pacto de Varsóvia e pediu proteção às Nações Unidas no conflito. Dois dias depois, mais de um milhar de tanques soviéticos cercavam Budapeste, controlando as principais estradas e pontes da cidade.

A 4 de novembro, o Exército Vermelho, com a ajuda de ataques aéreos e bombardeamentos, atacou o centro de Budapeste, numa intervenção que durou até ao dia dez e causou mais 20 mil vítimas mortais. As forças húngaras foram imediatamente derrotadas e a União Soviética ordenou a instauração de um novo governo.

Imre Nagy saiu de cena (foi posteriormente julgado e executado em 1958) e o seu anterior aliado Janos Kádar foi escolhido para liderar o novo executivo magiar. Um acontecimento trágico, que teve influência também no desporto, com a equipa de polo aquático da Hungria a ser protagonista no maior palco desportivo do mundo.
Tensões políticas: da cidade para a piscina
A equipa de polo aquático da Hungria era uma das melhores na sua altura. Foi também considerada uma das melhores da história e Imre Nagy não poupou esforços para proteger os atletas dos problemas políticos do país.

Aquando da revolução húngara, a equipa estava hospedada nos arredores de Budapeste, num campo de treinos. Os atletas testemunharam o conflito de longe. Diziam ouvir tiros vindos do centro da cidade e muitas vezes avistavam ao longe colunas de fumo.

Vencedores de três medalhas de ouro nas últimas quatro edições dos Jogos Olímpicos, os húngaros chegaram a Melbourne como favoritos. No entanto, a União Soviética aproveitou-se da ocupação no país magiar para poder espiar e copiar o estilo de jogo da Hungria.



A comitiva de mais de 100 atletas saiu da Hungria para a Checoslováquia e dali voaram para a Austrália, sem saber notícias do seu país ou da situação que viviam os seus familiares. Foi só à chegada a Melbourne que os magiares souberam o que tinha acontecido na terra natal.

Miklos Martin, único jogador que falava inglês, trouxe um jornal à comitiva e traduziu aquilo que ainda não se sabia: a União Soviética invadira Budapeste, causara o caos, derrotara as forças húngaras que pediam independência e matara milhares de pessoas. Os jogadores prometeram naquele momento que iriam jogar pelo país, pela Hungria independente e hastearam na vila olímpica uma bandeira húngara anterior à ocupação soviética. Em solidariedade com os húngaros, Espanha, Suíça e Holanda boicotaram a presença nos Jogos Olímpicos.

A primeira fase da competição foi fácil para os magiares. Na fase grupos, vitórias contra Estados Unidos e Reino Unido. Logo de seguida, Itália e Alemanha foram goleadas por 4-0. Nas meias-finais, o adversário pela frente era a União Soviética.

Ervin Zádor, um dos mais promissores jogadores húngaros, explicou anos mais tarde, à BBC, que os jogadores da Hungria viram aquele jogo como uma possível vingança, pelo sofrimento imposto ao seu povo.
União Soviética e Hungria, "Sangue na água"
Até hoje, é assim conhecido o que aconteceu naquele jogo. Num pavilhão de Melbourne, a 6 de dezembro de 1956, húngaros e soviéticos protagonizaram um dos jogos mais violentos alguma vez jogados no polo aquático.

O edifício estava cheio. Muitos húngaros, exilados na Austrália, apareceram e decidiram apoiar a sua seleção contra os soviéticos. Uma partida em que a tensão política de há um mês estava bem presente. O público gritava pelos magiares e insultava o adversário sempre que podia.

Ervin Zador explicou a tática. Como o ensino da língua russa era obrigatório na Hungria, quase toda a equipa sabia falar russo. A ideia era provocar o adversário e levá-lo a lutas dentro de água. “Pensámos, se eles ficarem zangados, começarão a lutar”, declarou Zador à BBC em 2011.

A tática funcionou, com os jogadores russos a serem penalizados pelo árbitro logo no início do jogo. Dezso Gyarmati, lendário capitão da equipa húngara de polo aquático, foi o primeiro a marcar na partida e no quarto período, os magiares venciam por 4-0.

Foto: Ervin Zádor, jogador húngaro, depois de ser atingido por Prokopov - DR

Ervin Zador marcou dois dos quatro golos e foi protagonista do momento mais relembrado desse jogo. Uma partida sempre repleta de animosidade entre os jogadores na piscina. A dois minutos do fim, é pedido a Zador que faça marcação a Valentin Prokopov e, depois de uma decisão do árbitro que foi contestada, o jogador húngaro é atingido com um forte soco na cara.

“Vi estrelas. Toquei na minha cara e senti sangue quente a escorrer. Disse instantaneamente: Meu Deus, não vou poder jogar a próxima partida”, disse o antigo jogador em entrevista à BBC.

Após a ação de Prokopov, o caos. O público exaltou-se, saltou as barreiras e tentou chegar a vias de facto com a equipa russa. O árbitro tentou tomar o controlo do jogo, mas sem sucesso. A polícia australiana no pavilhão protegeu de imediato a equipa soviética e escoltou-a até ao balneário.

Depois do incidente, foi terminado o jogo e dado o triunfo à Hungria, que vencia por 4-0. Por sua vez, Zádor foi levado para a enfermaria para tratar os ferimentos na cara.

Na final, a Hungria defrontou a Jugoslávia e venceu por 2-1. O ouro olímpico foi novamente revalidado pelos magiares mas Zádor viu o jogo da bancada. Recebeu a medalha em roupas civis.
Debandada após Jogos Olímpicos
Depois da glória desportiva, a vida de muitos atletas mudou radicalmente. Caso de Ervin Zádor: o jogador, de apenas 21 anos, não regressou à Hungria e pediu exílio aos Estados Unidos, país onde morou até à sua morte, em 2012.

Não foi caso único. Dos 100 jogadores que viajaram até Melbourne, praticamente metade da equipa não regressou à terra natal, devido à ocupação soviética no país.

No caso de Zádor, houve uma tentativa de regresso ao polo aquático. Não funcionou, já que o nível não era desafiante o suficiente para continuar a jogar. De seguida tornou-se treinador de natação e foi o mentor de uma das figuras mais emblemáticas da modalidade até hoje: Mark Spitz.

O húngaro levou o norte-americano a um estatuto lendário nos Jogos Olímpicos de Munique, de 1972, onde ganhou sete medalhas de ouro.

O interesse pela vida do treinador exilado, levou Mark Spitz a narrar um documentário sobre a vida e carreira de Zádor.
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