"Doença das emoções", uma jogada de 50 mil euros

por RTP
Vanessa Carvalho - Brazil Photo Press via AFP

Ao longo dos anos, o número de apostas online aumentou exponencialmente. De acordo com o relatório elaborado pelo Serviço de Regulação e Inspeção do Jogo (SRIJ), estima-se que, no primeiro trimestre de 2024, o número total de registos na atividade fosse de 4,3 milhões de jogadores.

Manuel (nome fictício) começou a apostar no Placard com menos de 18 anos. O que inicialmente foi uma brincadeira já o levou a gastar mais de 50 mil euros. Em dez anos de apostas, já desinstalou e instalou as aplicações por diversas vezes, mas acaba sempre por voltar a apostar.As publicidades disseminadas nos outdoors, nas redes sociais e nos intervalos dos programas de televisão evidenciam a facilidade com que se realizam apostas. São necessários três passos para os jogadores tentem a sua sorte.


Manuel recorda o dia em que fez a primeira aposta. Na altura, não sonhava em ganhar, queria apenas ter a experiência.

“Tudo começou com uma brincadeira com o meu irmão. Quando eu tinha menos de 18 anos, ele fez uma aposta e eu fiquei curioso, também quis fazer uma”, conta o jogador.
O valor da curiosidade

Apesar de não ter a idade estabelecida por lei para fazer apostas, Manuel não desistia de tentar a sorte. “Eu fazia as minhas apostas e o meu pai ou o meu irmão metiam-nas”, explica.

Naquela época, apostava dois euros para ganhar cinco euros. Depois, passou a apostar cinco para ganhar dez ou 15 euros, sempre com o objetivo de obter lucro. Chegou a um momento em que os valores que recebia já não eram suficientes.

O jogador queria aumentar o patamar dos ganhos e deixa claro o que pensa em relação a isso, “na ganância, mete mais jogos para dar mais”.

As apostas realizadas no Placard exigiam que Manuel percorresse mais de sete quilómetros até à cidade. Fazia esse percurso para fazer aquela que pensava ser a sua sorte e, em seguida, regressava à aldeia onde ainda vive. Mesmo que perdesse, nesse dia não voltava a apostar.

Atualmente, as apostas online têm um papel mais relevante na sua vida e, ao contar como entrou neste mundo, não hesita em afirmar: Online, se uma pessoa não tem muita cabeça perde tudo. Porque tu não vês o dinheiro fisicamente. Tu metes lá dez euros, perdes a aposta, e depois metes mais dez, mais dez e mais dez. Quando dás conta, se estiveres um sábado em casa, que é quando há mais jogos, colocas dez euros por aposta e, num instante, já gastaste 100”.

Falámos com o Manuel numa terça-feira. O céu cinzento e o frio indicavam o final da tarde e, nesse momento, surgiu a pergunta: “Quantas apostas é que faz por semana?”. 

A resposta foi quase imediata: “Eu aposto mais é durante o fim de semana”.

De acordo com o jogador, às sextas-feiras realiza entre duas a três apostas, enquanto que aos sábados e domingos faz cerca de quatro. Perante esta informação, questionámos Manuel sobre o número de apostas que já fez desde o início da semana. “Hoje fiz só uma. Ontem fiz duas”, devolveu.
Ás de Espadas nas apostas online

Após dez anos de apostas, quando questionado sobre o assunto, o jogador reflete e afirma que, no total, já gastou mais de 50 mil euros. Nas apostas online, o ás de espadas transforma-se facilmente numa jogada de azar.

Sempre que Manuel pretende fazer uma aposta, utiliza um site para saber que jogos é que estão marcados. Após obter essa informação, seleciona cerca de 100 para estudar as apostas nas quais tem maior probabilidade de ganhar. “Sou capaz de perder 30 minutos ou uma hora só para fazer uma aposta rápida”.Depois da análise, o jogador faz uma pesquisa com o objetivo de entender como é que as equipas estão em termos de vitórias e para identificar os melhores jogadores, uma pesquisa que demora duas ou três horas.

Manuel conta que, se estiver em casa num sábado, é capaz de passar uma tarde inteira a acompanhar tudo. “Depois, se tenho uma aposta numa equipa a ganhar e o jogo está 0-0, fico ansioso à espera que essa equipa marque e pode nem marcar. Uma pessoa perde muito tempo nas apostas. Às vezes, começo às duas da tarde e, quando dou conta, já são 18h00 ou 19h00, não aproveitei nada do dia por causa das apostas”.

Apesar de estudar todos os jogos, Manuel defende que nas apostas não é apenas o conhecimento a contar - é preciso sorte. “Houve aí o mês de março em que tive bastante sorte, todos os dias tinha sorte, ganhei um bom dinheiro”.

Nesse mês, conseguiu ter um lucro de três mil euros. No entanto, a vida de Manuel nas apostas não está repleta de trevos de quatro folhas. Duas semanas depois, já tinha gasto dois mil euros daquele lucro e, passado mais alguns dias, os “três mil euros já tinham ido à vida”.
A certeza de que não é um problema

Em Portugal, o número de jogadores que realizam apostas em casa ilegais tem aumentado. Apesar de não ser permitido, os apostadores mudam a VPN para aceder a estas plataformas.

Manuel começou a sua trajetória no jogo a apostar em jogos nacionais e nos quiosques de rua. No entanto, com o tempo, isso mudou e agora faz parte do grupo de jogadores que aposta numa casa ilegal russa. Quando ganha, recebe o valor por Paypal, por exemplo. Conta que o montante ganho não pode ser superior a cinco mil euros. “Acima de cinco mil, já tens de justificar ao Estado de onde é que vem o dinheiro. Se tu disseres que é de uma aposta ou de um casino ilegal, estás tramado. Por isso, uma pessoa quando ganha muito dinheiro tenta fazer levantamentos pouco a pouco”.

Na opinião de Manuel, os 50 mil euros que já investiu a tentar a sorte não se traduzem num problema com o jogo. Na fábrica onde trabalha, ele e os outros apostadores seguem o ditado: “Não gastes mais do que aquilo que podes”.

No entanto, não esconde que o pai lhe pergunta frequentemente se já deixou o jogo. “Para ele, aquilo é como se fosse um vício, mas sabe que já gastei mais do que agora”, refere.

Em determinados momentos, a irritação de ter perdido leva-o a desinstalar a casa de apostas e a cumprir o pedido do pai, “mas depois volto a apostar outra vez”.
O ciclo das apostas

Durante o verão, os campeonatos terminam e é nessa época que Manuel não realiza nenhuma aposta. Isso leva-o a reafirmar: “Para mim, as apostas são indiferentes. Se não houver jogos, não aposto e, às vezes, até há, mas consigo controlar-me para não fazer”.

Com esta afirmação, surge automaticamente uma pergunta: se Manuel diz que não tem nenhum vício e que se consegue controlar, que razões é que o levam a apostar?

Quando confrontado, a sua resposta é imediata. “Sinceramente? Eu jogo porque sou burro”, ri-se enquanto profere estas palavras.

Segundos depois, a sua expressão muda. Explica que ainda continuar a jogar porque “uma pessoa pensa: vou apostar porque posso ter um dinheiro extra. Então, acaba por fazer uma aposta para ver se consegue algo, mas, no fim, gastámos mais do que ganhámos, na verdade”.

Remata a sua resposta afirmando que, ao longo destes anos, nunca parou porque sente a necessidade, para logo contrapor: “Não é bem a necessidade, tenho aquela vontade de jogar, a curiosidade. Depois, acabo por reinstalar as aplicações, faço uma aposta e volta tudo ao início, então nunca consegui parar”.
Será esta resposta o início do icebergue do vício?

Manuel não considera que tenha uma adição.Serão estas apostas um hobby ou um vício? Com o objetivo de responder a esta pergunta, contactámos duas profissionais de uma clínica - Catarina Sousa, diretora técnica e assistente social, e Tatiana Pereira, psicóloga clínica. Ambas afirmam que não é possível obter um diagnóstico concreto apenas com as declarações de Manuel.

Apesar da carência de informações sobre a vida deste jogador, a psicóloga Tatiana Pereira explica que “o impulso está lá, ele não consegue controlar o impulso de jogar: perde e quer jogar, ganha e quer jogar. Logo, já existe aqui um item que faz com ele já tenha alguns pressupostos para ser um jogador patológico”.

A assistente social Catarina Sousa concorda com esta análise, afirmando: “Do meu ponto de vista, claramente que esta pessoa está em negação, pois apresenta vários itens que evidenciam uma dependência do jogo, pelo menos está a desenvolver e já tem alguns impactos”.A adição ao jogo é designada por ser a “doença das emoções”, os jogadores estão sempre à procura do prazer imediato e “neste caso o prazer é a vitória”, explica a psicóloga.


Gonçalo Estêvão, psicólogo do Instituto de Apoio ao Jogador, corrobora, afirmando que as pessoas jogam porque o jogo proporciona prazer. “Depois, existe uma camada à volta disso, que é a questão do dinheiro, mas a motivação normalmente, associada ao jogo tem a ver com prazer, ainda que muitas vezes as pessoas não tenham esta perceção”.

Relativamente à visão que tem das apostas de Manuel, declara: “Não podemos fazer um diagnóstico com base na informação disponível, mas há aqui alguns pontos que parecem apontar para haver aqui algum descontrolo”.

Estes aspetos são evidentes nas declarações de Manuel, que denotam uma incongruência interna. O jogador deseja sentir-se bem com o seu comportamento. No entanto, há um conflito subjacente. “Ele diz que não é um problema, mas também afirma que é “burro”, ou seja, estas partes parecem estar em conflito”, explica o psicólogo.

A assistente social esclarece, por sua vez, que a afirmação “jogo porque sou burro” reflete que “ele sabe que não está a fazer a coisa correta e que não está a ser inteligente ao fazer aquilo que está a fazer, sabe que perde, ele não ganha sempre”.

A psicóloga acrescenta que estas declarações acusam algum sofrimento, algo que acontece quando se tem “alguma consciência do problema e já se sofre um pouco, porque percebe que não consegue simplesmente parar quando lhe apetece. Não é assim tão linear, se fosse já teria desinstalado as aplicações e já não voltaria a instalá-las”.

A esperança de ganhar mais ou até mesmo “ganância”, como Manuel referiu anteriormente, leva-o a voltar a jogar, sempre com a intenção de conseguir duplicar ou triplicar o valor. “É assim que funciona a cabeça de um jogador”, explica Catarina Sousa.Os jogos estão feitos para que as pessoas sintam vontade de estar sempre a jogar e são diversos os “esquemas” utilizados, desde a atribuição de vidas até a oferta de presentes para avançar no jogo. O ato de ganhar estimula o cérebro, provocando um prazer semelhante ao consumo de substâncias, uma vez que, apesar da dependência do jogo parecer muito diferente de outras dependências, apresenta aspetos e consequências semelhantes.

Tal como noutros vícios, a aceitação de um problema de jogo é um processo complicado. A assistente social explica a aceitação da dependência: “Há pessoas que precisam de perder milhares para perceberem que têm uma doença, um problema com o jogo, e mesmo assim continuam a jogar. Há pessoas que, por iniciativa própria ou influência da família, conseguem perceber que algo não está bem e fazem o tratamento”.

No entanto, de acordo com a psicóloga Tatiana Pereira, há jogadores que só reconhecem que têm uma adição quando passam por um “desgoverno total. Quando falo em desgoverno total não é só financeiro, mas também com os familiares, com os amigos, no trabalho, em todas as vertentes sociais do ser humano”.

Geralmente, as pessoas que não fazem apostas, sejam físicas ou online, não têm a “noção do mundo que é o jogo” ou das consequências que tem na vida dos jogadores, explica Catarina Sousa.

As publicidades que rodeiam os jogadores, bem como aqueles que estão num processo de reabilitação, têm um efeito negativo, assim como acontece com outras dependências. Muitas vezes, os apostadores conseguem camuflar durante anos as consequências das apostas, uma vez que os indivíduos que sofrem desta adição “tendem muito à solidão e ao isolamento”, como explica assistente social.

Manuel representa a vida de milhares jogadores que, de alguma forma, estão a desenvolver ou já têm um problema com o jogo. No dia em que validou a sua primeira aposta, que foi feita numa brincadeira, investiu dois euros. Com o passar do tempo, o valor máximo que começou a despender deixou de ser uma moeda e passou a ser uma nota. Atualmente, já pagou um valor superior a 50 mil euros pela sua curiosidade.
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