Parte de uma elegia que espelha a contaminação entre a «imitatio vitae» e a «imitatio stili». Versos torturados que pensam, revelam e expõem os caminhos dolorosos da memória (leitura de André Gago)
MAIS INFOElegia I, O Poeta Simónides, falando - Zulmira Santos
O Poeta Simónides, falando /
ao capitão Temístocles, um dia, [co] /
em cousas de ciência praticando, /
üa arte singular lhe prometia, /
que então compunha, com que lhe ensinasse /
a se lembrar de tudo o que fazia; /
onde tão sutis regras lhe mostrasse /
que nunca lhe passasse da memória /
em nenhum tempo as cousas que passasse. /
Bem merecia, certo, fama e glória /
quem dava regra contra o esquecimento /
que enterra em si qualquer antiga história. /
Mas o capitão claro, cujo intento /
bem diferente estava, porque havia /
as passadas lembranças por tormento, /
«Ó ilustre Simónides! (dezia) /
Pois tanto em teu engenho te confias /
que mostras à memória nova via, /
se me desses ?a arte que em meus dias /
me não lembrasse nada do passado, /
oh! quanto milhor obra me farias!» /
Se este excelente dito ponderado /
fosse por quem se visse estar ausente, /
em longas esperanças degradado, /
oh! como bradaria justamente: /
«Simónides, inventa novas artes; /
não meças o passado co presente!» /
Que, se é forçado andar por várias partes /
buscando à vida algum descanso honesto, /
que tu, Fortuna injusta! mal repartes; /
e se o duro trabalho é manifesto /
que, por grave que seja, há-de passar-se /
com animoso esprito e ledo gesto; /
de que serve às pessoas alembrar-se /
do que se passou já, pois tudo passa, /
senão de entristecer-se e magoar-se? (…) //
Parte de uma elegia talvez dedicada a D. António de Noronha, espelha a contaminação entre a «imitatio vitae» e a «imitatio stili», num exercício poético em diálogo com Ovídio, Virgílio e também Garcilasso de la Vega - fidalgo, poeta e militar. Versos torturados que pensam, revelam e expõem os caminhos dolorosos da memória.